- Áurea Mouzinho
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Carla Avelina
Administradora de empresas
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Deborah Delage
Consultora em amamentação
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Florencia Lorenzo
Pesquisadora, Tax Justice Network
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Ivandro Claudino
Analista de sistemas
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Michele Carvalho
Artesã
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Roos Saalbrink
Assessora política em justiça econômica e serviços públicos responsivos a gênero na ActionAid
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Teresinha Menezes
Educadora social
Cuidados com o lar, crianças, idosos, pessoas com doenças; trabalho precarizado e mal remunerado: as mulheres estãos exaustas! E a culpa também é dos super ricos … que seguem ditando as regras do jogo e contribuindo menos do que deveriam com impostos.
Orçamento público para serviços de cuidados por meio de uma tributação justa para aliviar o cansaço das mulheres, ao mesmo tempo em que se garante o direito ao cuidado de todas as pessoas, é o tema do episódio #47 do É da sua conta.
No É da sua conta #47:
- Como as crises ambientais, econômicas, sanitárias e outras afetam proporcionalmente mais a vida das mulheres.
- A relação secular entre a riqueza de alguns bilionários – a maioria no norte global – com a pobreza de milhares de mulheres – a maioria no sul global.
- Nós mulheres estamos exaustas: ouvintes contam como lidam com as múltiplas jornadas e sugerem políticas públicas que aliviem essa sobrecarga.
- A tributação justa como solução: desigualdades de gênero na estrutura dos sistemas tributários devem ser corrigidas e deve-se investir em sistemas públicos de cuidados.
“Se traçarmos uma linha contínua, desde a colonização, a escravatura, vemos que são processos de extração de força de trabalho de populações periféricas, que estão na base da produção de riqueza para os grandes magnatas do capitalismo. As mulheres na África, América Latina e Caribe e Ásia continuam a ser exploradas através do trabalho produtivo e também reprodutivo.”
Âurea Mouzinho, Aliança Global para a Justiça Fiscal
“Na verdade, meu companheiro e filho contribuem com uma tarefa ou outra, um dia ou outro. É uma divisão desigual porque, no dia a dia, essa responsabilidade recai sobre mim.”
Teresinha Menezes, educadora social
“As noites são especialmente difíceis porque não temos cuidadora para um suporte prático nesse horário. Muito do meu trabalho é executado on line, às vezes no horário noturno. É comum que minha mãe não compreenda o que significa estar em chamada de vídeo e queira me interromper a todo custo. E isso com certeza gera algum grau de ansiedade a mais.”
Deborah Delage, consultora em amamentação
“Meu maior desafio é na hora de sair; pegar um transporte público com meu filho, uma criança de colo, pois as condições não são boas, está sempre cheio, às vezes não tem lugar para sentar. Vou levar o meu filho para a creche a pé e não tem como andar nas calçadas com o carrinho porque é esburacada, tem muitos desníveis.”
Michele Carvalho, artesã
“Os governos precisam reduzir a carga tributária injusta das mulheres e adotar uma tributação progressiva, redistributiva e igualitária de gênero. E isso inclui novas formas de tributação sobre o capital e a riqueza, bem como depender menos de impostos sobre o consumo também é importante.”
Roos Saalbrink, Action Aid
“É preciso gerar receitas e financiar uma transição para um sistema de cuidados público e formalizado. Os recursos para isso podem ser levantados a partir de políticas de justiça fiscal. A Tax Justice Network calcula que todos os anos se perdem quase meio trilhão de dólares para abusos fiscais causados por grandes multinacionais e de indivíduos muito ricos. Esses são recursos que poderiam ajudar a financiar essa transição.”
Florência Lorenzo, Tax Justice Network
“Um serviço público que eu pudesse contar seria o educativo, pra envolver toda a família nos cuidados, principalmente os homens, porque viemos de uma criação muito machista, muito preconceituosa. E a educação e os exemplos movem muito mais.”
Carla Avelina, administradora de empresas
“Reconhecer que a carga da mulher é maior é o primeiro passo para que a gente possa olhar e dizer que a gente pode dividir tarefas para que se reduza essa pressão sobre elas.”
Ivandro Claudino, analista de sistemas
É da sua conta é o podcast mensal em português da Tax Justice Network. Coordenação: Naomi Fowler. Produção e apresentação: Daniela Stefano e Grazielle David. Dublagem: Cecília Figueiredo. Download gratuito. Reprodução livre para rádios.
Abertura + Sobe BG
Grazielle David: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas. Eu sou a Grazielle David.
Daniela Stefano: E eu a Daniela Stefano.
O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal.
Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.com e nos mais populares tocadores de áudio digital.
Grazi: Cuidados com o lar, crianças, idosos, doentes; trabalho precarizado e mal remunerado: as mulheres estãos exaustas! E a culpa também é dos super ricos … que seguem contribuindo menos do que deveriam.
Orçamento público para serviços de cuidados por meio de uma tributação justa para aliviar o cansaço das mulheres, ao mesmo tempo em que se garante o direito ao cuidado de todas as pessoas, é o tema do episódio #47 do É da sua conta.
BG – SOm de pessoa lavando louça
Terezinha Menezes: Oi sou Terezinha Menezes, tenho 42 anos, moro em Teresina no Piauí, sou educadora social. Minha rotina de diária de cuidados com a casa e com a família, que se assemelha à de muitas outras mulheres.
Meu companheiro contribui com as tarefas de casa, assim como meu filho também, apesar de ser uma divisão desigual, porque na verdade há uma tarefa ou outra, um dia ou outro eles contribuem. No dia a dia essa responsabilidade recai sobre mim.
E para além disso, tem a carga mental de pensar em consultas com o filho, as minhas próprias consultas, meus cuidados como mulher, me preocupar com a alimentação do meu esposo que é diabético. E às vezes eu fico nesse papel de mãe, controlando o que ele come, o que não come.
Grazi: A Terezinha diz que a vida dela se assemelha à da maioria de nós mulheres, que temos de dar conta da casa, das crianças, idosos, pessoas doentes, do trabalho – muitas vezes mal remunerado – e de nosso desenvolvimento enquanto pessoa, estudos, lazer, enfim, da vida.
Dani: Além da Teresinha, você ouvirá vozes de mais ouvintes do É da Sua Conta neste episódio, sobre como lidam com os cuidados em casa.
Grazi: E é bem possível que o distanciamento social vivido durante a pandemia tenha sido importante pra que muitas de nós despertassem para o peso das tarefas diárias.
A Roos Saalbrinck da Action Aid, descreve um pouco do cenário que vivemos:
Roos Saalbrink: Acho que se começarmos com a crise do COVID, a pandemia, a crise alimentar, etc. Acho que isso demonstrou a atual organização social injusta, desigual e insustentável do cuidado. Os sistemas econômicos estão falhando dramaticamente com as pessoas e com o planeta, como estamos vendo pela aceleração da crise climática e pelo aumento da desigualdade, bem como pela regressão dos direitos das mulheres..
Dani: As mulheres são proporcionalmente as mais afetadas por qualquer tipo de crise, especialmente aquelas que já enfrentam múltiplas formas de discriminação ou desigualdades, por ser mulher, de baixa renda, ter pouca escolaridade e ser negra, por exemplo.
Som de pessoa varrendo a casa
Deborah Delage: Olá, meu nome é Déborah. Eu sou dentista de formação. Mas tive uma carreira no serviço público no SUS e me aposentei em 2017, aos 57 anos. Hoje eu sou consultora de amamentação como autônoma, mas além disso, faço parte de um núcleo familiar, onde existe ainda uma adolescente, filha minha, e uma mãe idosa com um quadro de demência que avança cada vez mais.
As noites são especialmente difíceis porque não temos cuidadora para dar um suporte prático nesse horário e muito do meu trabalho é executado on line e às vezes no horário noturno. Então é sempre mais complexo evitar as interferências da idosa nas minhas atividades. É comum que ela não compreenda o que significa trabalhar no computador, ou estar em chamada de vídeo, com um grupo e queira interromper a todo custo. E isso com certeza gera algum grau de ansiedade a mais.
Algumas pessoas acham que cuidar de um idoso se compara a cuidar de uma criança, mas eu vejo de forma totalmente diferente.
Quando eu tinha minha filha pequena, ela era uma criança que tinha demandas, mas suas perguntas, suas necessidades, seus choros, eles pareciam sempre estar ancorados em uma coisa aqui que se fosse resolvida depois geraria um crescimento, uma evolução.
Cuidar de um idoso com demência é muito diferente. A gente sabe que as coisas não vão melhorar. As perguntas repetitivas que acontecem às vezes de forma obsessiva durante um determinado dia e não levam as respostas que a gente possa dar, não levam a lugar algum. Não fixa a memória e, ao contrário da criança, a gente não cuida sabendo que vai ver uma evolução para melhor. A gente cuida sabendo que o desfecho é outro.
Som de pessoa varrendo a casa
Florência Lorenzo: O cuidado e o sistema de cuidado, sejam eles formais ou não, são componentes centrais da vida em sociedade. Todos nós, mas principalmente mulheres e meninas, de uma forma ou de outra, cuidamos dos nossos amigos, dos nossos familiares, das nossas comunidades.
Dani: Essa é a Florencia Lorenzo, pesquisadora da Tax Justice Network
Florencia: Mas ainda, nas nossas sociedades, muitas pessoas não conseguem acessar políticas públicas que garantam o seu direito de serem cuidadas, o que é um elemento fundamental para garantir a dignidade de todo mundo. E, além disso, aqueles que trabalham em atividades de cuidado frequentemente não têm o seu trabalho formalizado ou reconhecido.
Grazi: É importante reconhecer que é com amor que cuidamos de uma criança, de uma pessoa idosa, de uma pessoa doente ou de qualquer outra pessoa que necessita de cuidados. A vida não pode ser toda monetizada. Entrentanto, esse tipo de trabalho tem sido responsabilidade quase que exclusiva das mulheres. É necessário mudar isso, dar visibilidade, reconhecer e redistribuir.
Na esfera domestica, o trabalho precisa ser compartilhado entre todas as pessoas que moram na casa, mas um sistema de cuidados público, além de gerar mais igualdade de gênero, significa também muitos empregos gerados e mais receitas fiscais.
Assim, sendo um trabalho como parte de um sistema público de cuidados, deveria ser considerado também um investimento.
Florencia: De forma geral, a falta de um sistema de cuidados eficaz não é apenas um problema ético e moral, na medida em que ele limita a liberdade das mulheres nas sociedades, mas ele também gera um sistema economicamente super ineficaz. Além disso, ao tornar esse sistema público, também é possível organizar institucionalmente os elementos da vida social, que muitas vezes são relegados ao ambiente doméstico.
SOm de crianças na creche
Michele Carvalho: Meu nome é Michele Carvalho, eu tenho 37 anos e sou artesã. Os meus dias são divididos entre as tarefas da casa, que é limpar, cozinhar, lavar. O trabalho aqui no ateliê e também o cuidado com o meu filho, ele tem 3 anos.
Bom, a creche ajuda muito, assim, é um serviço público, né? Ele está na creche pública, é um serviço público que ajuda demais.
Mas, assim, acho que o maior desafio é na hora de sair, por exemplo, na hora de pegar um transporte público com uma criança, por exemplo, de 3 anos, criança de colo, é muito difícil, assim, as condições do transporte não são boas, está sempre cheio, às vezes não tem lugar para sentar, às vezes as pessoas ignoram a sua presença lá. As ruas, eu vou levar o meu filho para a creche a pé, porque eu não tenho carro, e aí se eu levo ele num carrinho, por exemplo, não tem como andar nas calçadas com o carrinho. Você tem que andar na rua, porque a calçada é esburacada, tem muitos desníveis.
SOm de crianças na creche
Grazi: As coisas estão ficando piores: apesar da importância de criar ou fortalecer políticas públicas que compõem um sistema público de cuidados, dois terços dos países no mundo, voltaram a adotar medidas de austeridade fiscal ainda durante os efeitos da pandemia de Covid-19.
Roos: Estamos vendo cortes orçamentários em todo o mundo. O Alerta Global de Austeridade constatou no ano passado que, em 2022, cerca de 159 países cortariam seus orçamentos públicos, o que significa que 85% da população global viverá sob condições de austeridade, ou seja, haverá menos recursos disponíveis para serviços públicos de cuidados. E também significa que os serviços existentes estão sendo privatizados ou reduzidos, o que é muito, muito preocupante que isso ocorre durante uma pandemia global.
Dani: O sistema inteiro depende das mulheres cuidando de todes. Sem elas, toda a economia entra em colapso. E, sem saber, as mulheres são as amortecedoras dos impactos da austeridade fiscal. É isso que demonstra um estudo, divulgado em 2022, pela ActionAid e Internacional de Serviços Públicos (ISP).
Ou seja, são as mulheres que assumem os cuidados onde faltam serviços públicos, mas sem remuneração:
Roos: E isso ocorre, em parte, porque o trabalho de cuidado não remunerado não é contabilizado no PIB. É contabilizado como custo no orçamento público. Então esta é uma contribuição muito escondida e invisibilizada para nossas sociedades e é realmente problemático que não seja incluso no PIB.
Grazi: Nós mulheres estamos exaustas e precisamos de sistemas públicos de cuidados para aliviar essa sobrecarga.
Esses sistemas precisam ser urgentemente fortalecidos, com pessoal, infraestrutura, recursos financeiros, de modo que ofereçam serviços, salários e condições de trabalho adequados.
Até porque atualmente são as mulheres a maioria das trabalhadoras desse sistema, afirma a Roos, da ActionAid.
Roos: E as mulheres também trabalham em serviços públicos vitais, como saúde e educação, pelo qual trabalham extremamente mal remuneradas, em condições precárias e com contratos inseguros.
E isso é tanto um sinal de reforço da desigualdade de gênero como das normas de gênero. Isso também é chamado de divisão sexual do trabalho, no qual as mulheres fornecem o maior subsídio para nossa economia e sociedades, através de seu trabalho de cuidado desproporcionalmente não remunerado.
Dani: Para mudar esse cenário é fundamental ter sistemas públicos que reconheçam o valor social e econômico do trabalho de cuidado e do direito humano a ser cuidado.
Roos: Os sistemas de cuidados públicos são realmente importantes e precisamos redistribuir o trabalho de cuidado dentro das famílias, entre todos os trabalhadores e realmente eliminar essa divisão sexual do trabalho, bem como entre a família e o Estado. E, finalmente, também é importante resgatar a natureza pública dos serviços de atendimento e restaurar o dever e a responsabilidade primária do Estado na prestação desses serviços.
BG
Carla Avelina: Oi, meu nome é Carla e eu sou administradora de empresas. Eu tenho 41 anos. Atualmente eu trabalho numa organização do terceiro setor na parte financeira.
Eu não tenho noção de quantas horas eu gasto por semana, porque como eu trabalhava homeoffice, então tipo, quando eu tenho um espacinho de tempo no meu trabalho, eu já tenho que fazer outra coisa, então já aproveito na verdade lá para otimizar.
Eu não tenho muita ajuda aqui em casa, as vezes um jantar ou alguma coisa do tipo meu marido faz, a minha filha as vezes ajuda a tirar o lixo, mas não, não é frequente.
E o que me vem na cabeça assim de serviço público que eu pudesse contar, seria alguma coisa educativa, sabe? Pra envolver toda a família, principalmente os homens, porque a gente é de uma criação muito machista, muito preconceituosa. Então que a gente sabe que a educação e os exemplos movem muito mais do que só falar.
Então, se o governo pudesse disponibilizar algum tipo de serviço educacional para que fosse mostrado que essas atividades todos temos que fazer não só um gênero específico que tem que fazer isso seria muito bom.
BG
Grazi: Para uma oferta universal de proteção social, saúde, renda básica e educação, com uma abordagem sensível ao gênero, é fundamental que haja mais investimento.
Esses serviços públicos e direitos são realmente essenciais para a redistribuição dos trabalhos de cuidados não remunerados, bem como para transformar esses serviços em atividades feitas por pessoas, indiferente do gênero.
Dani: Serviços de cuidados devem criar milhões de empregos decentes com salários justos e condições de trabalho humanas, o que ajudaria a reduzir a disparidade salarial entre homens e mulheres.
E, com certeza, isso precisa ser combinado com os direitos de livre associação e negociação coletiva, através de sindicatos, por exemplo.
Roos: E isso exige uma reavaliação e reorganização radical da economia, colocando no centro o cuidado das pessoas e do planeta.
E isso também significaria uma redistribuição equitativa de poder e recursos dentro e entre os países de forma a permitir o cumprimento dos direitos das mulheres, igualdade de gênero e uma transição justa.
O que é realmente necessário é um financiamento adequado para a saúde pública universal de qualidade e cuidados através de impostos progressivos.
BG
Ivandro Claudino: Me chamo Ivandro Claudino, eu tenho 43 anos, sou analista de sistemas, moro em Fortaleza, Ceará e eu tenho uma família um pouco diferente dos padrões atuais. Eu tenho quatro filhos. Eu tenho um de 13 anos, um outro rapazinho de 9 e um terceiro rapaz, de três anos e uma garotinha de um aninho. Que eles acabam entrando também na nossa dinâmica, né?
E aí o que a gente costuma fazer lá em casa? A gente tenta socializar as tarefas diárias e acaba que a gente, um, ajuda o outro. Nesse ponto eu acho que sou sortudo em dizer que a gente tem uma afinidade boa ao ponto da gente conseguir distribuir um pouco as tarefas, né?
Apesar de eu reconhecer que ela tem mais tarefas do que eu. E eu acho que esse é o primeiro passo a gente reconhecer que a carga da mulher é maior para que a gente possa olhar e dizer que a gente pode dividir tarefas para que reduza essa pressão.
BG
Dani: Muita coisa poderia mudar em casa se mais homens e mais meninos também colaborassem com os afazeres domésticos e cuidados com as crianças, pessoas doentes e idosos na família.
Mas ainda assim, sempre haverá a necessidade de um sistema público de cuidados ou mesmo uma remuneração como parte deste sistema para quem está em casa trabalhando pelo bem estar de outras pessoas. Para isso, é preciso de dinheiro.
Florência, como a justiça fiscal pode ajudar a mudar esse cenário de exploração das mulheres nas atividades de cuidados que estão levando elas à exaustão?
Florencia: Então, parte dos impostos são importantes para gerar receitas e financiar uma transição para um sistema que formalize e torne público o cuidado. Os recursos para financiar essa transição podem ser levantados a partir de políticas de justiça fiscal.
Por exemplo, nós calculamos na Tax Justice Network que todos os anos se perdem quase meio trilhão de dólares para abusos fiscais. A gente está falando de abusos de grandes multinacionais e de indivíduos muito ricos. Esses são recursos que poderiam ajudar a financiar essa transição.
Grazi: Educação, transporte, saúde, creches, aposentadorias, pensões e até calçadas melhor pavimentadas e áreas de lazer, como praças públicas:
para que os Estados cumpram com o dever de prover serviços públicos de cuidados sem disparidades de gênero, a tributação progressiva é central para arrecadar os recursos necessários, defende a Roos.
Roos: Realmente, a tributação é o recurso mais sustentável para fazer isso. E a natureza progressiva da tributação significa que quem tem mais condições de pagar deve pagar sua justa parte e quem tem menos recursos contribui como pode.
Dani: Acontece que super ricos não estão contribuindo com a justa parte de impostos e o pior, estão acumulando riquezas cada vez maiores.
Em 2022, apenas 10 bilionários possuiam juntos mais riqueza do que 200 milhões de mulheres africanas. No Brasil, os 3.390 indivíduos mais ricos, maioria deles homens, detêm 16% de toda a riqueza do país; isso significa que este ínfimo 0,0016% da população tem riqueza equivalente ao que mais de 85% de brasileires tem para viver, de acordo com estudo “A lei do mais rico” da Oxfam.
Âurea Mouzinho, da Aliança Global por Justiça Fiscal, lembra que as desigualdades iniciaram a muitos séculos atrás:
Âurea Mouzinho: Se nós traçarmos uma linha contínua, desde as explorações, as conquistas, a colonização, a escravatura, nós vemos que são processos de extração de força de trabalho de países periféricos, de populações periféricas, que estão na base da produção de riqueza para os grandes magnatas do capitalismo. E isso não deixa de ser verdade hoje. As mulheres na África, na América Latina e no Caribe, que são as regiões que hoje em dia e também em conjunção com a Ásia, continuam a ser os grandes pólos de extração de recursos, de força, de força de trabalho, através do seu trabalho produtivo e também reprodutivo.
Grazi: E tudo está conectado: a exploração de recursos e acumulação de riquezas por grandes corporações sediadas nos países do Norte, por exemplo, segue gerando pobreza nos países do Sul.
Âurea: Nós vivemos num mundo onde o processo de desenvolvimento capitalista é junto e combinado. E isso é importante realçar porque geralmente há várias teorias sobre o desenvolvimento do capitalismo que tendem a olhar para os processos de maneira separada, como se houvesse um mundo para os países ricos e as pessoas ricas, e o outro mundo para as pessoas pobres e os países pobres.
Dani: E no caso das mulheres, além de terem suas forças de trabalho exploradas – na maioria das vezes de maneira mal remunerada fora de casa – as atividades domésticas e de cuidado de filhos e familiares, é também uma maneira de manter esse sistema de exploração funcionando:
É este trabalho, também chamado de reprodutivo, que permite que crianças cheguem à escola, adultos ao trabalho.
Ou seja: ainda que sejam cuidados essenciais para manter a família viva, com saúde e disposição, o trabalho doméstico produz gratuitamente uma mercadoria essencial para o capitalismo: as pessoas que vão trabalhar para ele.
E é uma da razões para que empresas lucrem muito, já que as pessoas podem ser vistas como “matéria-prima” adquirida gratuitamente!
Grazi: Mas essa sobrecarga de trabalho das mulheres é injusta e as políticas fiscais e tributárias deveriam representar, reconhecer, reduzir e redistribuir o trabalho não pago ou mal remunerado.
Sim, os 4 Rs da justiça tributária podem ser aplicados aos cuidados – redistribuição, receita, reprecificação e representação – como a Roos da ActionAid detalha.
Roos: Os governos precisam reduzir a carga tributária injusta das mulheres e adotar uma tributação progressiva, redistributiva e igualitária de gênero. E isso inclui novas formas de tributação sobre o capital e a riqueza. E depender menos de impostos sobre o consumo também é importante.
Os impostos sobre o consumo afetam desproporcionalmente as famílias de baixa renda e as mulheres são a maior porcentagem maior nestas famílias em todo o mundo.
Também precisamos pedir aos governos que eliminem o preconceito e a discriminação de gênero nas políticas fiscais para garantir que as receitas fiscais sejam arrecadadas e gastas de maneira a promover a igualdade de gênero.
Grazi: E no R da representação: uma das demandas do movimento de mulheres na tributação é direcionada aos governos, para que as regras dos impostos sejam desenhadas de maneira que diminuam a sobrecarga financeira para as mulheres, como explica Âurea Mouzinho:
Âurea: Há muitos códigos fiscais que não consideram as linhas de pobreza quando definem as fasquias para quem começa a pagar impostos.Nós sabemos que em todo o mundo a pobreza é altamente fenimizada.Então, se temos códigos tributários que consideram, por exemplo, a fasquia mais baixa para quem começa a pagar impostos sobre o rendimento, não tem em consideração quem é pobre, isso é uma forma de de acentuar as desigualdades de género.
Dani: Ou seja, existe uma faixa de renda que deveria ser considerada como mínima para viver com dignidade, cujos rendimentos não deveriam ser tributados.
Isso é fundamental para as mulheres, que são as mais pobres nas sociedades.
Grazi: Além disso, são as mulheres que pagam proporcionalmente mais impostos sobre o consumo, como o IVA na maioria dos países ou o ICMS no Brasil:
Âurea: Os impostos do consumo são geralmente regressivos, mas dentro das famílias são as mulheres que geralmente arcam com as principais despesas de manutenção da casa. Por exemplo, comprar comida, comprar coisas que sustém a família no dia a dia. Então isso são despesas sobre as quais incide o imposto de valor acrescentado com maior gravidade.
Então, é por isso que é preciso entender, num nível mais profundo, como é que as diferentes políticas e até como é que os diferentes sistemas e capacidades das autoridades tributárias vão afetar essas dinâmicas de género já existentes na sociedade.
Dani: O pior é que além de pagarem proporcionalmente mais impostos, muitas vezes os recursos arrecadados não voltam para a sociedade em forma de políticas públicas que diminuam a sobrecarga nos ombros das mulheres:
Âurea: Para nós, a campanha Make Taxes Work for Women ou que os impostos funcionem para as mulheres significa principalmente demandar que os impostos sejam utilizados para o financiamento de serviços públicos de qualidade, que são a principal forma de reduzir a carga do trabalho do cuidado que as mulheres realizam.
Grazi: Os governos têm o dever de eliminar o preconceito e a discriminação de gênero nas políticas tributárias para garantir que as receitas fiscais sejam arrecadadas e gastas de maneira a promover a igualdade de gênero.
Dani: Em parceria com diversas organizações que lutam por justiça fiscal, a Aliança Global para justiça tributária promoveu em março de 2023 uma jornada mundial pelos direitos das mulheres.
O tema destes dias de debate foi a taxação de super ricos e suas riquezas. E embora houvesse até movimentos de milionários pedindo para contribuírem com mais impostos isso ainda não ocorreu.
Âurea, o que precisa ser feito para que super ricos passem a colaborar com mais e, consequentemente, diminuir essa desigualdade de gênero?
Âurea: Politicamente, Nós estamos num momento em que hoje os ricos não são só ricos, mas são também poderosos e podem controlar os interesses políticos para que fique mais difícil que eles sejam tributados. Então já estamos num momento de mais aceitação ou o campo da aceitação é mais amplo, Mas existem ainda muita, muita resistência a nível político para que isso aconteça, porque inevitavelmente são os grandes ricos que controlam também muitos dos processos políticos a nível internacional.
Grazi: Nos últimos 150 anos, os países da OCDE ditaram as regras da tributação internacional, que em geral, seguiram beneficiando as grandes empresas que estão no norte global e prejudicando as populações dos países do sul global.
Desde o fim de 2022, os movimentos de justiça fiscal comemoram que a ONU aprovou uma resolução para fazer um relatório tributário, e que isso pode levar a uma convenção tributária e a um organismo multilateral tributário, o que é o primeiro passo muito importante para que todos os países do sul global passem a discutir e decidir sobre a tributação internacional.
Isso significa que o trabalho está apenas começando:
Âurea: Os países da OCDE e avançam muito a ideia de que ainda é possível fazer algumas coisas através da OCDE. E com isso nós devemos entender que os países da OCDE também representam os interesses das grandes corporações que são sediadas em muitos desses países.
Por exemplo, quando esses países propõem uma tributação mínima global de 15%, que é para dez entre 10 a 15 pontos de percentagem abaixo da taxa média de tributação corporativa dos países africanos, por exemplo, nós vemos que os interesses que estão a ser protegidos são os interesses das grandes corporações. Então,a nível político é onde a luta reside.
Grazi: E o que é preciso fazer para avançar na luta política por uma tributação mais justa?
Âurea: E por isso não é só necessário fazer movimentação técnica, é necessário criar colisões com organizações, com movimentos que estão a demandar não só nas plenárias de grandes conferências, mas também nas ruas, e plantear essas questões como questões de democracia, como questões de justiça e como questões de direito.
Dani: Se você acredita que é importante tirar essa sobrecarga dos ombros das mulheres através da transferência de dinheiro dos super ricos para impostos justos com o objetivo de realizar políticas públicas, como saúde, saneamento e transporte, a Âurea tem um convite para você:
Âurea: Então, o meu convite é para que as pessoas questionem e não aceitem as políticas tributárias ou qualquer política econômica, já agora de mão beijada, como se fossem maná dos céus.
Eu acho que já há uma grande discussão sobre a maioria destas coisas e que não se intimidem com as questões da tributação.
A pessoa não precisa ser um técnico de tributação para ser uma uma defensora da justiça tributária: a justiça tributária é sobre como os recursos públicos são arrecadados e como é que eles são distribuídos. E eu acho que sobre isso basta ser cidadão e basta ser cidadã.
BG Fechamento
Grazi: As mulheres estão exaustas. E isso não pode continuar assim. Os Estados têm o dever de ofertar sistemas públicos de cuidados que possam aliviar essa sobrecarga. E esses sistemas públicos de cuidados devem contar com condições de trabalho e salários dignos, até porque as mulheres são a maioria que trabalha neles.
Para financiar esses sistemas públicos de cuidados é fundamental contar uma tributação justa e progressiva: é tempo de tributar super ricos e grandes corporações. As mulheres não podem seguir sendo os amortecedores sociais das crises.
Além disso, qualquer elemento com desigualdade de gênero na estrutura dos sistemas tributários deve ser corrigido. Março, mês do dia internacional das mulheres, é tempo de lembrar que essa é uma data de luta por justiça de gênero, e aqui no É da sua conta apoiamos a campanha da Aliança Global por justiça fiscal “Feministas por tributação da riqueza já!”
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Espaço ouvinte: E no espaço ouvinte, agradecemos a todas as pessoas que, apesar das múltiplas jornadas, pararam alguns minutinhos pra nos contar sobre a rotina de cuidados.
E se você quiser fazer parte da nossa lista de distribuição e colaborar com próximos episódios desta forma, envia seu nome e número de whatsapp para [email protected] que a gente te cadastra.
Todos os episódios do É da Sua Conta estão em www.edasuaconta.com ou no seu tocador de áudios favorito e pra falar com a gente, estamos no twitter e_dasuaconta e no facebook.
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Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A dublagem é de Cecília Figueiredo e a produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David.
Um abraço e até o próximo.
Dani: Até o próximo e, se você é homem, pensa nas mulheres ao seu redor, colabora com os afazeres domésticos e os cuidados e lute com elas por justiça fiscal.