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Maria Emilia Mamberti
Co-diretora de programa do Center for Economic and Social Rights e coordenadora da Iniciativa pelos Direitos Humanos na política fiscal.
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Nathalie Beghin
Colegiado de gestão do Inesc.
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Nilda Silva
Presidenta do Movimento De Defesa dos Direitos dos Moradores em Favelas (MDDF) de Santo André, São Paulo
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Poliana Garcia
Coordenadora de projetos da secretaria de assuntos internacionais do Ministério da Fazenda Ministério da Fazenda
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Sergio Chaparro Hernández
Coordenador de incidência global, Tax Justice Network
Os Direitos Humanos se tornaram uma das bases para que a tributação internacional seja mais justa. Isso porque eles estão presentes no termo de referência aprovado em agosto de 2024 e que vai guiar a construção da Convenção Tributária Internacional das Nações Unidas.
Mas até ser incluído no texto, esse foi um dos pontos que gerou mais debates entre os países membros da ONU que participaram do processo. Saiba como foi esse debate e a importância da inclusão de direitos humanos nesse documento no episódio #64 de É da Sua Conta.
- O que são direitos humanos? Como os principios de direitos humanos devem orientar as políticas tributárias? Como tratados e leis internacionais defendem a tributação como maneira de realizá-los?
- A luta por moradia digna do Movimento de Defesa dos Direitos dos Moradores em Favelas de Santo André (São Paulo)
- Os bastidores da aprovação do conceito de direitos humanos no termo de referência que vai guiar a construção da Convenção Tributária Internacional na ONU.
“Eu penso em todas as crianças que vivem em áreas totalmente insalubres, sem água, sem luz, e com medo constante da noite… além da fome. É por isso que eu luto pra que todos tenham moradia digna.”
~Nilda Silva, MDDF“Se há um conjunto de normas obrigatórias que conclama os Estados a cooperar internacionalmente em questões tributárias, esse conjunto é a Lei Internacional de Direitos Humanos.”
~Sergio Chaparro, TJN“Os direitos humanos indicam que deve ser mobilizado o máximo de recursos disponíveis e, com isso, obrigam os Estados a tomar medidas, como a luta contra os abusos fiscais ou a revisão rigorosa de certos benefícios fiscais.”
~ Maria Emilia Mamberti – CESR“Os países do Sul foram vencedores, pois o termo de referência aprovado na segunda sessão saiu com uma cara muito mais do Sul do que do Norte global”
~ Nathalie Beghin, Inesc“Sem essa garantia que os direitos humanos se façam cumprir a partir das estratégias de cooperação tributária internacional, não é possível que nós nos comprometamos com políticas tributárias que vão de fato atacar o problema da desigualdade.”
Poliana Garcia – Ministerio da Fazenda brasileiro
Dublagem: Cecília Figueiredo
Nilda Silva – Eu sou Nilda Silva e estou presidenta do MDDF, Movimento de Defesa dos Direitos dos Moradores em Favelas de Santo André. Eu moro na favela chamada Ipiranga. Hoje a gente tem água encanada, tem um saneamento básico existe casas consolidadas, hoje não existe mais barraco aqui, na parte de baixo, mas ela falta ser urbanizada. O que é urbanização? É o que a lei permite uma casa com no mínimo uma porta, uma janela, que tem espaço, que tenha ventilação. É muita casa úmida onde não bate sol, onde não tem uma rua onde pode passar dois carros. Aqui a gente enfrenta o problema da enchente, por estar muito próximo ao rio.
Daniela Stefano – O direito a moradia digna é garantido pela constituição federal desde 1988.
Mas cerca de 16 milhões de pessoas vivem em favelas e uma em cada mil em situação de rua no Brasil. O que a tributação pode fazer para que toda a população tenha na vida real o direito a moradia digna e todos os outros direitos humanos?
Grazielle David – Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas e o planeta. Eu sou a Grazielle David.
Dani – E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal. Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.com e nos mais populares tocadores de áudio digital.
Grazi – Como os Princípios de direitos humanos podem tornar a tributação internacional mais justa? Este é o tema do episódio #64 do É da Sua Conta.
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Grazi – Em agosto de 2024, os Direitos Humanos se tornaram um compromisso dos países como uma das bases para que a tributação internacional seja mais justa. Isso porque eles estão presentes no termo de referência da Convenção Tributária Internacional das Nações Unidas. Mas até ser incluído no texto, esse foi um dos pontos que gerou mais debates entre os países membros da ONU que participaram do processo. Afinal, o que são direitos humanos?
Dani – Direitos Humanos são os direitos básicos de todas as pessoas. São uma conquista relativamente nova na história da civilização. A aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948 e veio como resposta aos horrores da segunda guerra mundial. Pode ser vista como um amadurecimento dos seres humanos após séculos de normatização de violações como a escravização de pessoas ou o tratamento de minorias ou mulheres como se fossem de categorias inferiores. A declaração dos direitos humanos defende os fundamentos da vida digna para toda a humanidade. Os direitos humanos são garantidos também por tratados e convenções internacionais ou pelas normas gerais de um país, como a Constituição Federal brasileira.
Sergio Chaparro – Se há um conjunto de normas obrigatórias que conclama os Estados a cooperar internacionalmente em questões tributárias, esse conjunto é a Lei Internacional de Direitos Humanos.
Grazi – Sergio Chaparro é coordenador de incidência global da Tax Justice Network
Sergio – Praticamente todos os Estados já assinaram tratados vinculantes de direitos humanos que contêm a obrigação de cooperar para cumprir os direitos humanos dentro e fora das fronteiras, entre outras obrigações relacionadas aos impostos. Ao esclarecer como as obrigações de direitos humanos dos Estados se aplicam a questões tributárias internacionais, os mecanismos de direitos humanos da ONU observaram que os Estados devem, por exemplo, garantir que não obstruam outro Estado de cumprir suas obrigações de mobilizar recursos para os direitos, impondo condições injustas em tratados fiscais, por exemplo. Também devem garantir que os atores empresariais que eles podem regular ou influenciar não prejudiquem os esforços dos Estados em que operam para realizar plenamente os direitos, por exemplo, recorrendo as estratégias de evasão ou elisão fiscal nos países em questão.
Grazi – Os princípios de direitos humanos fortalecem a soberania dos países, promovem a cooperação e evitam que ações de um país possam prejudicar outro, inclusive na questão tributária. Isso porque o abuso fiscal internacional reduz a arrecadação tributária dos países, o que impede o adequado financiamento de políticas e serviços públicos, prejudicando a vida das pessoas e do meio ambiente.
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Dani – Apesar de todos estes tratados e convenções e normas e leis vivemos em uma sociedade em que os direitos básicos sem distinção de gênero, etnia, religião e classe social ainda são uma utopia. Entre estes direitos humanos universais que seguem sendo violados está o direito à moradia digna:
Nilda – Em 1987, quando, né, a gente legalizou o movimento, a gente começa a observar o quê? que precisava de leis específicas pra garantia da moradia digna, aonde a gente pega e começa a lutar por políticas públicas, aonde vem um D a mais, um D de direito de estar inserido na cidade.
Grazi – Essa é a Nilda Silva, presidenta do Movimento de Defesa dos Direitos dos Moradores em Favelas em Santo André, cidade metropolitana de São Paulo da região conhecida como ABC.
Nilda – Santo André é cercado de favelas Núcleos habitacionais que são as favelas urbanizadas, onde estão os predinhos ou as casinhas e ocupações. Então, a luta do movimento hoje é para que essas pessoas que vivem mal, elas tenham uma moradia digna dentro de um terreno onde se possa construir ou predinhos ou até casas.
Dani – De que forma o Movimento de Defesa dos Direitos dos Moradores em Favelas atua para melhorar a vida das pessoas?
Nilda – Hoje o MDDF, ele está em mais de cinco conselhos da cidade para ajudar a construir políticas públicas para os moradores de favela. Então hoje a nossa luta é conscientizar as pessoas na cultura, nos conselhos do meio ambiente, que a ocupação é ruim, porque a tragédia dos eventos naturais que estão vindo por aí, que é a não preservação do meio ambiente, a gente sabe que isso vai prejudicar. E quem sofre primeiro? Quem é o pior prejudicado? É quem está na beira do rio ou em cima dos morros, então nossa luta hoje é isso, é pegar essas pessoas que vivem mal para levar a ter uma moradia digna.
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Dani – E como a tributação pode contribuir para a efetivação de direitos básicos como a moradia?
Grazi – Desde maio de 2021 existe um documento elaborado por diversas organizações que lutam por justiça fiscal na América Latina chamado de Princípios de Direitos Humanos na Política Fiscal. Ele pode orientar os países sobre as ações fiscais que devem realizar para cumprir com suas obrigações baseadas nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais são signatários.
Maria Emilia Mamberti – As obrigações em matéria de direitos humanos indicam que deve ser dada prioridade às despesas relativas aos direitos, em especial àquelas essenciais dos direitos econômicos e sociais.
Dani – Maria Emília Mamberti, co-diretora de programa do Center for Economic and Social Rights e coordenadora da Iniciativa pelos direitos humanos na política fiscal.
Maria Emilia – Os direitos humanos indicam que deve ser mobilizado o máximo de recursos disponíveis e, com isso, obrigam os Estados a tomar medidas, como a luta contra os abusos fiscais ou a revisão rigorosa de certos benefícios fiscais.
Nilda Silva – Ninguém deixa de pagar o seu aluguel, por mais sofrido que seja, para ir para uma ocupação com dois, três filhos pequenos ou a pessoa viver ali de uma forma desumana.
Grazi – Nilda Silva, do Movimento de Defesa dos Direitos dos Moradores em Favelas de Santo André, São Paulo.
Nilda – Vim pra cá e eu lembro que eu fui muito medrosa por causa disso acho que a falta de energia, a falta de luz e quando era criança eu tinha muito medo eu acho que é isso é um trauma da sua infância,e eu penso em todas as crianças que vivem no local totalmente insalubre, sem água, sem luz, e o medo constante da noite, além da fome, a falta dessas coisas básicas. É por isso que eu luto pra que todos tenham moradia digna.
Dani – Maria Emília, qual a relação entre a pobreza e a pobreza extrema que vivem estas famílias com a política fiscal?
Maria Emilia – A relação entre a pobreza e a pobreza extrema e a política fiscal é muito direta. Porque é exatamente a segurança social e a proteção social que devem ser garantidas através de políticas fiscais adequadas para que todas as pessoas possam, pelo menos, ter acesso a um nível de vida adequado. Este é um benefício específico que todos os países da região e praticamente todos os países do mundo estão obrigados a garantir nos pactos internacionais de direitos humanos que assinaram. A única forma de garantir estes direitos é, por exemplo, através da prestação de benefícios de segurança social, que só podem ser eficazes se forem apoiados por uma política fiscal que os acompanhe e assegure.
Nilda – Próximo ao centro existem donos de empresas, de terrenos que não pagam o IPTU.
Grazi – IPTU é o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, muito importante para as cidades brasileiras, já que 45% da sua arrecadação é usada para financiar a educação e a saúde pública. O problema é que esse imposto também sofre muita sonegação, o que compromete serviços públicos, investimentos em infraestrutura urbana e a política de moradia.
Nilda – E isso está lá no nosso plano diretor de 2004, aplicação do IPTU progressivo, que é justamente pegar essas áreas em voltar em HIS.
Dani – HIS é a sigla para Habitação de Interesse Social que atende a população de baixa renda de uma cidade. Mas além da não aplicação do imposto para a construção de moradias populares, a especulação imobiliária é outra barreira pra quem não tem onde morar:
Nilda – Tem empresários do setor imobiliário que constrói no centro, ou em outros bairros bons, que um metro quadrado chega a 11 mil reais. Ele pode pagar as multas ambientais, ele pode derrubar, fazer qualquer coisa e pagar, porque ele vai vender um metro quadrado a 11 mil reais. Santo André mudou totalmente o terreno o desenho da cidade com as construção de prédios caríssimos. E a outorga onerosa não é aplicada na habitação que é de interesse social.
Grazi – Outorga onerosa é uma concessão emitida pelo poder público para que o proprietário do imóvel possa construir além do básico estabelecido, desde que pague algo em troca. Este tipo de prática, na opinião de Maria Emília Mamberti, precisa ser avaliada sob a perspectiva dos direitos humanos.
Maria Emilia – Há um aspeto de prestação de contas que os direitos humanos trazem para a política fiscal que exige uma avaliação das razões para a concessão desses benefícios e dos impactos concretos da concessão desses benefícios.
Dani – Para Nilda imóveis fechados, que não pagam impostos, ou áreas que vem sendo exploradas pela especulação imobiliária deveriam ser destinados para as famílias que vivem sem urbanização:
Nilda – Quem ocupa não aguenta mais morar em um lugar precário que se paga tudo. Ele quer o direito à moradia , quer uma casa própria. Diferente de quem tem dinheiro, que pode simplesmente pagar, porque a multa ambiental, tem um custo mas a pessoa pode pagar, desmatar e concretizar, construir e ficar com um bonzinho. E tudo aquilo que ela fez, que ela desmatou que ela tirou da natureza, ela vai pagar para o município um valor muito pouco em vista do que vai ser o problema ambiental. Então assim, quem ocupa não é o culpado, e sim quem paga para tirar e derrubar a árvore e transformar aquela área verde em prédio.
Grazi – De um lado, faltam moradias para a população de baixa renda e, de outro, grandes empresas conseguem autorização do governo local para construir edifícios enormes. Maria Emília qual o papel da política fiscal nesses casos?
Maria Emilia – O Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem a ver com a qualidade e a eficácia das despesas. Uma vez que os Estados são obrigados, segundo o direito internacional, a mobilizar o máximo de recursos disponíveis para garantir os direitos económicos e sociais, este comitê interpretou que os Estados têm o dever de garantir que as despesas públicas tenham certa qualidade e eficácia. E a comissão tem boas normas que relacionam esta obrigação de direitos humanos com questões de corrupção. As questões de corrupção não são apenas um problema em si devido aos aspectos, digamos, criminais do processo, mas também devido aos recursos que desviam do cumprimento de algumas funções públicas e, em particular, da garantia dos direitos econômicos e sociais.
Dani – Nesta situação de moradia precária e falta de urbanização, o que se observa são diversas violações aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. De que forma a política fiscal pode ser ferramenta de reparação destas violações?
Maria Emilia – Nossas constituições são ambiciosas no reconhecimento destes direitos e na atribuição de instrumentos para os garantir. Além disso, os nossos países assinaram praticamente todos os documentos internacionais relevantes em matéria de direitos humanos que protegem esses direitos. Verificamos que nos diferentes países representados na Iniciativa existiram esses regulamentos. Em muitos casos, recorremos aos tribunais de justiça para processar os Estados para que esses direitos fossem reconhecidos na prática. E verificamos que, mesmo quando esses processos eram bem sucedidos e pedíamos reparações pelas violações dos direitos humanos constatadas nesses casos, encontrávamos uma barreira muito grande para implementar essas decisões. Não cumpriam porque não tinham os recursos. Foi aí que começamos a trabalhar com a ideia de que, sem recursos, não há direitos.
Grazi – E como lidar com a falta de recursos?
Maria Emilia – Começamos a ler orçamentos e a ampliar nossos argumentos para entender quais recursos os estados estavam deixando de arrecadar por causa dos benefícios fiscais, por exemplo, para mostrar como em muitos casos era falsa essa ideia de que os direitos não podiam ser cumpridos porque os estados simplesmente não tinham recursos. E aí encontramos, por exemplo, muitos casos em que os orçamentos destinados à educação eram sub-executados, ou seja, estavam disponíveis para realizar, por exemplo, obras de infraestrutura escolar. Mas simplesmente não foram utilizados devido a ineficiência, não do custo. Assim, nos demos conta de que era essencial ligar a exigência de direitos a uma leitura da política fiscal baseada nos direitos.
Dani – Para que a tributação internacional leve os direitos humanos em conta, é preciso que estes princípios, apontados por Maria Emília, façam parte da Convenção Tributária que está sendo construída nas Nações Unidas.
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Grazi – Finalmente os países do Sul Global e suas populações poderão se beneficiar, já que estão sendo escutados para redesenhar as regras fiscais internacionais. Pela primeira vez, os 193 estados das Nações Unidas discutem os parâmetros para a elaboração de uma convenção marco sobre tributação internacional. Com isso, pode-se evitar que cerca de 5 trilhões de dólares sejam levados a paraísos fiscais nas próximas décadas. E com esses recursos, seria possível garantir a realização dos direitos humanos.
Dani – De 26 de abril a oito de maio de 2024, representantes de governos do mundo todo e pessoas que lutam por justiça fiscal estiveram reunidos na primeira sessão para elaborar os termos de referência para a construção de uma Convenção Tributária na ONU. O episódio #61 do É da Sua Conta foi sobre isso. Se você quiser ouvir, acesse em www.edasuaconta.com.
Grazi – A segunda rodada de elaboração desses termos de referência ocorreu de 29 de julho a 16 de agosto de 2024, também nas Nações Unidas, em Nova York. Qual é a importância deste documento para o futuro da tributação internacional? Quem responde é Nathalie Beghin, co-diretora do Instituto de Estudos Socioeconômicos. O Inesc também integra a Red de Justicia Fiscal da America Latina.
Nathalie Beghin – Então, os termos de referência formam o documento que vai definir como será o processo de negociação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre cooperação tributária internacional. Então, é um documento que vai balizar como será todo o processo de negociação, da Convenção, que deverá durar até 2027.
Dani – Na primeira etapa da elaboração desse termo de referência repetiu-se a disputa do século entre ONU e OCDE como espaço de discussão e acordos para a tributação internacional. Houve tensão entre os países do Norte e os países do Sul global. E nesta segunda etapa, quais foram os pontos de tensão?
Nathalie – Então, os países do Norte, que já estão acostumados há vários anos a negociar temas de tributação na OCDE, não se conformam de que esse espaço esteja sendo abandonado a favor das Nações Unidas. Então, há um processo permanente de tentar boicotar as negociações, porque eles querem manter a OCDE como palco privilegiado das negociações de tributação, o que os países do Sul não querem mais, porque benefício zero para os países do Sul. Então, os países do Sul mandaram avisos, disseram que não estão satisfeitos com os resultados da OCDE em matéria de cooperação tributária internacional.
Grazi – Os países que fazem parte da OCDE, conhecido como clube dos países ricos, representam e defendem os interesses de quem se beneficia com o atual sistema tributário internacional, ou seja, grandes corporações e super ricos, em sua maioria localizados no Norte global. Nathalie, você pode dar um exemplo de diferenças que você observa entre as negociações que ocorrem na OCDE e na ONU?
Nathalie – Uma coisa muito interessante de ver foi que, na ONU, as negociações eram públicas, eram filmadas, e todo mundo que quisesse acompanhar podia. E cada país falava na língua que era sua, se assim quisesse, pelo menos nas línguas oficiais das Nações Unidas. Então, o chinês falava em mandarim, os árabes falavam em árabe, e por aí vai. Já na OCDE, se você não fala inglês, não tem dinheiro para ir para Paris, você já não tem voz mesmo, porque não é país membro, aí é que não participa mesmo.
Dani – Durante as discussões na ONU, os países do Norte tentavam boicotar ou retardar o processo para tudo o que significava perder força na OCDE.
Nathalie – Eu diria que essa é a grande tensão, e que os países do Sul foram vencedores, pois a convenção saiu com uma cara muito mais do Sul do que do Norte global.
Grazi – Os países do Sul venceram e isso significa que as populações do mundo todo venceram, já que as regras impostas pela OCDE só favorecem grandes corporações e super ricos no Norte Global! Como os países do Sul conseguiram essa vitória importante?
Nathalie – A primeira, a questão é numérica, que os países do Sul são muito mais numerosos do que os países do Norte. Só que até então não havia alianças, dependendo de determinados temas, como o Grulac, como o G77, mas em matéria de tributação não havia uma aliança. E essa aliança se formou, liderada pelos países da África.
Dani – Grulac é como o grupo dos países da América Latina e Caribe são chamados nas Nações Unidas. G77 é a coalizão de nações dos países em desenvolvimento. E a liderança dos países do continente africano faz muito sentido pois são provavelmente os mais prejudicados pela falta de cooperação global em matéria de tributação. Sofrem com exploração de seus recursos naturais, fluxos financeiros ilícitos e abuso fiscal. Suas populações são as que mais perdem. Atuar em conjunto é a solução.
Nathalie – A União Africana fez algo incrível, muito bonito, era muito interessante ver como eles, durante as três semanas de negociação, todos se alinhavam sistematicamente. Tinha um só porta-voz, que falava o nome de todos. Isso aconteceu um pouco na América Latina. Então, quando junta esses dois continentes, digamos assim, em interesses que são comuns, numericamente ganha-se. Então, os países da OCDE sabem que se for para a votação, eles perdem, perdem quantidade. Então, acho que era isso. Era o numérico associado a uma cooperação entre os países do Sul cansados da exploração dos países do Norte.
Grazi – O Inesc é uma das organizações que participa da Iniciativa de Princípios de Direitos Humanos para a Política Fiscal. A Maria Emilia, que a gente ouviu antes nesse episódio se referia exatamente ao documento criado por essa iniciativa. Nathalie, de que forma a Iniciativa e esse documento dos princípios em específico ajudaram a construir os termos de referência e podem ser úteis na construção da Convenção?
Nathalie – A iniciativa já começou a atuar, porque grande parte das organizações da iniciativa participaram dessas três semanas de negociação em Nova York. Durante os debates, quando direitos humanos entravam e saíam, as organizações da iniciativa tiveram voz durante as negociações, defendendo a importância dos direitos humanos no tema da tributação. Além disso, pelas conexões que a iniciativa têm com os defensores de direitos humanos, tanto na ONU quanto na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acionaram os seus relatores e representantes, para que, por sua vez, essas pessoas entrassem em contato com os governos.
Dani – Que bom saber que os direitos humanos possam ser considerados na Convenção Tributária.
Nathalie – A gente, como sociedade civil, teve definitivamente um papel importante nos resultados alcançados, isso porque, em grande medida, a gente tem uma liderança da Aliança Global por Justiça Fiscal, que é quem, junto conosco define as melhores práticas e formas de fazer a incidência e, assim, a gente caminha muito fortalecidos, porque não estamos, cada um atirando pelo seu lado, a gente monta uma equipe da sociedade civil que tem cara, que tem rosto, que sse faz presente de forma organizada. Foi muito interessante, dessa vez, a gente fazer a questão de falar em todos os idiomas que a gente podia, da ONU, então, a gente faz intervenções em francês, em espanhol, em inglês, só para mostrar que nós somos uma sociedade civil qualificada, diversa e potente.
Dani – Os termos de referência foram aprovados nesta segunda sessão. A Grazielle também estava participando deste momento histórico. Grazi, quais são os próximos passos?
Grazi – Os termos de referência serão votados na Assembleia Geral da ONU, que deve ocorrer até o final de 2024. Se aprovado, deve orientar a elaboração da Convenção Tributária na ONU. E esse processo deve durar três anos de acordo com o termo de referência.
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Dani – Além do papel fundamental das pessoas e organizações que lutam por justiça fiscal, alguns países se destacaram no convencimento dos demais sobre a importância de mencionar direitos humanos na Convenção Tributária da ONU. É o caso do Brasil, como explica Poliana Garcia, consultora do G20 junto ao Ministério da Fazenda na iniciativa de cooperação tributária internacional. Ela também participou das negociações dos termos de referência da Convenção.
Poliana Garcia – Sem essa garantia que os direitos humanos se façam cumprir a partir das estratégias de cooperação tributária internacional, não é possível que nós nos comprometamos com políticas tributárias que vão de fato atacar o problema da desigualdade. Essa desigualdade seja social, seja racial, seja de gênero, então envolve vários aspectos que impactam na vida das pessoas, e atingir os objetivos do desenvolvimento sustentável, como tem se proposto o Brasil até então, na sua agenda de política externa, e que é um princípio muito importante para os países como o Brasil, e outros países da América Latina.
Grazi – Mas a conexão entre direitos humanos e justiça fiscal nem sempre é tão nítida na visão de alguns representantes dos países na ONU.
Poliana – Nós tivemos uma resistência com essa menção do tema, nos termos de referência, por parte de algumas delegações, sob a justificativa de que o documento tratava de uma matéria tributária em específico , e isso não teria nenhuma relação com expressar os direitos humanos.
Dani – Poliana, quais delegações eram resistentes à menção de direitos humanos no termo de referência da Convenção Tributária da ONU?
Poliana – Nós tivemos três posicionamentos principais ali dentro da negociação. Um primeiro posicionamento é mais de resistência, né, que foi puxado pelo grupo árabe, votou por retirar a menção e justificando justamente no escopo do texto que tratava de questões tributárias. E, ao mesmo tempo, você tem um grupo africano que entende a sensibilidade desse tópico, e também fechou com o grupo árabe em alguns pontos da negociação, então, alguns países apoiaram a retirada dessa menção aos direitos humanos, justificando que o texto devesse expressar o posicionamento de grande parte dos países, né, ou seja, defendendo um texto inclusivo.
Grazi – Isso é, numa tentativa de conciliação, o grupo africano apoiou excluir a menção aos direitos humanos para que todos os países se sentissem incluídos e representados no texto.
Poliana – Articulando com esse mesmo grupo, você tem Índia e Rússia que sugerem, como um meio termo, né, uma solução equilibrada, fazer uma menção sobre resoluções que tratam de direitos humanos no preâmbulo do texto, possibilitando, assim, a retirada dessa menção na parte dos princípios.
Dani – Mas a posição mais controversa era a do grupo dos Juscanz, formado por Japão, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Austrália.
Poliana – De outro lado, você tem também o grupo dos Juscanz, né, que assim a gente define, que é Japão, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, que acabam defendendo, de certa forma, essa menção no escopo dos direitos dos contribuintes, ou seja, não uma menção universal, mas uma menção encerrada apenas aos direitos dos contribuintes e a questão da privacidade.
Grazi – Ou seja, o grupo dos Juscanz defendia a falta de transparência na declaração de bens e rendas de empresas e daqueles mais ricos alegando o direito à privacidade destes contribuintes. Por exemplo, é frequente a dificuldade em conseguir informações sobre quem recebe privilégios fiscais, com a justificativa de sigilo fiscal. Na verdade, quando direitos como o sigilo fiscal e o direito a informação são confrontados, o interesse público deve prevalecer.
Poliana – E por fim, você tem o grupo latino-americano, né, puxado aí também com apoio dos países insulares, né, que também está na parte da região do Caribe, que apoiava uma menção universal aos direitos humanos de maneira irrestrita, Então, esse posicionamento, ele foi defendido pelo grupo europeu, que apoiaram também essa menção mais ampla.
Dani – No final, direitos humanos foi mencionado no termo de referência para elaboração da Convenção Tributária da ONU. Como os países latino americanos e caribenhos se articularam para a mudança na redação e a entrada do termo?
Poliana – Então, a gente chegou inclusive a submeter comentários em conjunto, que propusemos essa linguagem no final ali como uma proposta de modificação do texto que estava presente, e encontramos algumas dificuldades, mas no final das contas prevaleceu a nossa defesa, o grupo europeu nos apoiou, e essa articulação foi muito importante.
Grazi – O grupo da América Latina e Caribe também garantiu a participação da sociedade civil, ou seja, de organizações que defendem os direitos nos espaços da Convenção Tributária.
Poliana – Também a gente conseguiu conquistar outra menção muito importante no texto, que é a participação da sociedade civil junto ao comitê da convenção, que consta na versão aprovada na última semana, e que foi uma proposta que também surgiu dos países latino-americanos, Costa Rica, com um forte apoio de Colômbia e Brasil. Então foi essencial essa articulação.
Dani – O Brasil tentou colocar o termo progressividade dentro dos princípios, ou seja, quem possui mais deve contribuir com mais. Por que esse princípio básico para reduzir desigualdades não foi aprovado?
Poliana – A nossa tentativa era trazer ali, na seção dos princípios, num parágrafo onde trata do sistema de cooperação tributária que estamos tentando estabelecer e traz uma série de princípios. mesmo que a gente tenha tido apoio dos países da América Latina e de outros países também, ele não teve ampla aceitação porque alguns países alegaram que ainda tivesse muito amplo esse termo, que carecesse de discussão, de aprofundamento.
Grazi – Apesar de progressividade não ter entrado no termo de referência, a tributação dos super ricos aparece como possível tema de um protocolo antecipado. O Brasil é o principal defensor dessa proposta.
Poliana – O nosso objetivo principal agora é a aprovação do protocolo para a tributação dos super ricos na Convenção da ONU, que com certeza vai ser uma oportunidade única, histórica, para que a gente avance em formas concretas e efetivas de garantir que esses indivíduos paguem a justa contribuição que eles devem para a sociedade. Essa agenda ela vai além de defender a tributação progressiva. Então, depois da aprovação dos termos de referência, que consideramos uma vitória, a menção ao compromisso de tributar os super ricos, bem como a possibilidade de existir um protocolo que trate do tema especificamente, nós temos aí como próximo desafio defender a aprovação desse protocolo de uma forma prioritária no texto da Convenção Quadro.
Dani – O termo de referência definiu que serão dois protocolos antecipados. Um sobre a tributação da renda dos serviços transfronteiriços, ou seja, daqueles que envolvem mais de um país, como é o caso de empresas como Uber. E, nesses casos, tributar a empresa e não as pessoas que usam esse serviço. O tema do outro protocolo será selecionado durante a elaboração da Convenção. São quatro temas elencados, um deles a tributação dos super ricos. Os protocolos são documentos separados, mas fazem parte da Convenção Tributária. Cada país terá a opção de aderir ou não aos protocolos. Os países que aderirem são obrigados a cumprir.
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Dani – Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, Comitê pela Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra as mulheres, Cedaw, Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Estes são alguns dos mecanismos de direitos humanos internacionais que já existem. Como eles monitoram a implementação das obrigações que os países têm para com suas populações?
Sergio Chaparro – Por exemplo, em 2016, o Reino Unido e seus territórios e dependências ultramarinos foram examinados pelo Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, devido ao impacto que a legislação de sigilo financeiro e as regras permissivas sobre impostos corporativos têm sobre a capacidade dos países em desenvolvimento de mobilizar recursos para cumprir os direitos humanos.
Dani – Sergio Chaparro, coordenador global de incidência da Tax Justice Network.
Sergio – Em 2017, o Comitê da CEDAW pediu à Suíça que restringisse a capacidade dos países em desenvolvimento de mobilizar recursos para proteger os direitos das mulheres.
Dani – Como os tratados internacionais de direitos humanos podem ser utilizados para promover uma tributação internacional justa e progressiva?
Sergio – Um bom ponto de partida é o comentário-general nº 24 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no qual esse órgão interpretativo autorizado da ONU esclarece várias das implicações das normas de direitos humanos sobre a tributação internacional, inclusive a inconsistência da concorrência fiscal descendente com essas obrigações. O Comitê fornece parâmetros sólidos de interpretação que deverão ser levados em conta na negociação da Convenção. Também é necessário esclarecer nada na Lei Internacional de Direitos Humanos, nada, ou seja, nas normas universais,que permitam a inferência de que os chamados direitos dos contribuintes ou o direito à privacidade devem prevalecer sobre o dever dos Estados de ter uma tributação justa que permita a mobilização de recursos suficientes para garantir os direitos econômicos, sociais e ambientais.
Música para conclusão
Grazi – A relação entre os direitos humanos e a política fiscal acontece de duas formas: 1. os direitos humanos, como a moradia digna, alimentação e saúde, devem ser financiados por recursos públicos arrecadados com a tributação. 2. os princípios de direitos humanos devem orientar as normas de política fiscal para que sejam justas. O primeiro passo para que direitos humanos estejam no texto da Convenção Tributária da ONU foi dado durante a elaboração dos termos de referência, em agosto de 2024. Assim, é fundamental que organizações que lutam por justiça fiscal e toda a população acompanhe e participe do processo da Convenção para exigir que a tributação internacional se torne mais justa e reduza desigualdades tanto entre as pessoas quanto entre os países.
Música encerramentoTranscrição #64 Direitos Humanos podem tornar tributação mais justa
Grazi – O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David. Um abraço e até o próximo.
Dani – Te desejo uma excelente continuação de manhã, tarde ou noite… Abraço fraterno e até o próximo!
Evasão fiscal é uma atividade ilegal (costuma ser crime) pela qual os contribuintes evadem impostos por meio de fraude. Por outro lado, elisão fiscal significa contornar (ou evitar) o espírito da lei sem de fato violar as leis. Há uma grande área cinza entre os dois polos de elisão e evasão.
Evasão fiscal é uma atividade ilegal (costuma ser crime) pela qual os contribuintes evadem impostos por meio de fraude. Por outro lado, elisão fiscal significa contornar (ou evitar) o espírito da lei sem de fato violar as leis. Há uma grande área cinza entre os dois polos de elisão e evasão.
Os países oferecem incentivos fiscais – por exemplo, imposto zero sobre a receita dos ganhos de capitais – para atrair dinheiro de outros lugares. Pesquisas sugerem que incentivos fiscais transnacionais costumam ter nenhuma ou pouca finalidade fiscal e são, com frequência, nocivos.