#79 Multinacionais dos EUA: as que mais cometem abusos fiscais
#78 Abusos fiscais no centro da crise hídrica e climática
Convidadxs

As multinacionais estadunidenses são as que mais escondem lucros em países que atuam como esconderijos fiscais e os Estados Unidos representam um perigo para a soberania tributária de todos os países, inclusive de si próprio, na presidência de Donald Trump. Estas são algumas das conclusões do relatório “Estado da Justiça Fiscal 2025” da Tax Justice Network. A Austrália e a Convenção Tributária da ONU apontam o caminho: transparência, tributação unitária e distribuição justa do direito de tributação passam pela solução.

No episódio #79 do É da Sua Conta você ouve sobre:

  • As medidas tomadas pelos Estados Unidos que prejudicam todos os países, inclusive os próprios EUA.
  • Como as multinacionais se utilizam de brechas nas regras internacionais para esconder seus lucros em jurisdições de baixa ou nula tributação.
  • Sinais de mudança 1: Austrália deve divulgar relatórios país por país.
  • Sinais de mudança 2: Avançam as negociações na Conveção Tributária da ONU.

“Se essas multinacionais não estão pagando, a gente está pagando: elas estão ficando mais ricas e a gente ficando mais pobre. Então, aumenta a desigualdade entre ricos e pobres, entre as multinacionais e as pequenas empresas. ”
~Livi Gerbase, CICTAR

“Se o Fisco Australiano publica essas informações no seu site, qualquer um vai descobrir exatamente quantos empregados aquela empresa tem na Austrália, quanto do lucro foi tributado na Austrália, mas também nos Estados Unidos, no Brasil, no Chile… é um baita avanço.”
~Marcio Calvet Neves, advogado tributarista

“O que começamos a ver foi a Convenção Tributária da ONU sendo elaborada com alguns compromissos inovadores. Muitos governos defenderam que os lucros fossem tributados também onde as atividades das multinacionais ocorrem, o que não acontece atualmente.”
~Liz Nelson, Tax Justice Network

Transcrição

Áudio da Marcha indígena na COP 30

Grazielle David: Durante a COP30, a conferência do Clima da ONU, que aconteceu em Belém em novembro de 2025, o movimento indígena fez uma grande marcha pelo direito de mais participação na tomada de decisões nos processos que afetam suas vidas e seus territórios.

Áudio da Marcha Global por justiça climática na COP30

Daniela Stefano: Movimentos sociais realizaram uma Marcha Global por justiça climática na COP30. A participação popular nas ruas foi uma das marcas da conferência em Belém, já que nas três COPs anteriores, havia restrição de manifestações.

Sergio Chaparro Hernandez: O avanço da COP30 é agridulce, mais amargo que doce.

Grazi: Este é o Sergio Chaparro Hernandez, representante da Tax Justice Network na Conferência do Clima da ONU.

Sergio: Agora precisamos de reformas  usadas na arquitetura financeira internacional e de uma cooperação genuína por parte dos países do norte global, desde a dívida e a tributação internacional até a transferência de tecnologia e o comércio, para que aqueles que derem os primeiros passos rumo à descarbonização possam fazer com justiça econômica e social esse processo, garantindo plenamente os direitos humanos de seus povos.

Dani: Reformas na arquitetura financeira global são urgentes. Uma delas é colocar um fim ao abuso fiscal das multinacionais, especialmente das big techs apoiadas pelos EUA, que fez com que os países perdessem quase meio trilhão de dólares em impostos corporativos.

Música de abertura

Grazi: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas e o planeta. Eu sou a Grazielle David.

Dani: E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal.

Música

Grazi: O episódio 79 do É da Sua Conta é sobre os abusos fiscais causados pelas  multinacionais dos Estados Unidos ao mundo.

Dani: A solução passa por transparência, tributação unitária e distribuição justa do direito de tributação.

Música

Grazi: Os Estados Unidos representam um perigo para a soberania tributária de todos os países, inclusive de si próprio, na presidência de Donald Trump. A conclusão é do relatório Estado da Justiça Fiscal 2025 da Tax Justice Network.  Florencia Lorenzo, pesquisadora da Tax Justice Network.

Florencia Lorenzo:  Quando um país permite que o seu espaço de política seja capturado por um grupo de atores domesticamente, essas normas vão ser desenvolvidas para o benefício de algum grupo de atores.  E aí, esse relatório, faz um zoom numa reforma que foi implementada no primeiro governo Trump, que era o chamado Tax Cuts and Jobs Act.

Dani: Cortes de impostos e aumento de empregos em português. A lei estadunidense reduz as alíquotas de imposto de renda sobre pessoas jurídicas e implementa uma série de outras medidas, entre elas um modelo semiterritorial de tributação internacional. Esse modelo isenta a maior parte da renda de origem estrangeira, mas mantém a tributação sobre alguns tipos de rendimentos de fora do país.

Florencia: O que o nosso relatório mostra é que a implementação dessa lei teve impactos no resto do mundo, porque permitiu um espaço maior para o deslocamento de lucros por multinacionais com matriz americana para as jurisdições de baixa tributação.

Grazi: Florencia, de que forma as medidas tomadas pelos Estados Unidos fazem com que multinacionais contribuam com menos impostos nos países onde atuam?

Florencia: Bom, o foco do relatório é justamente nas dinâmicas do que a gente chama em Inglês de Profit Shifting, que é quando a empresa multinacional pode registrar de forma artificial os seus lucros em jurisdições de baixa tributação. O relatório vai analisar usando dados da OCDE combinados com alguns dados que existem apenas para as multinacionais americanas. O que meus colegas fizeram é mostrar como essas medidas que, teoricamente, foram desenhadas para diminuir a alocação de lucros em direções de baixa tributação não tiveram esse efeito e, pelo contrário, a gente vê um aumento continuado do tempo no registro dessas alocações.

Dani: O relatório trabalha com dados de 2021 quando estas informações foram publicadas pela última vez. De 2016 a 2020, os Estados Unidos eram os mais prejudicados por essas em dinâmicas. Mas em 2021, o impacto é quase total também no resto do mundo.

Florencia: Empresa multinacional, a atuação dela nas diferentes jurisdições nas quais elas têm atividades econômicas significa que, dependendo de como as regras tributárias internacionais estão desenhadas, o nível de transparência, vai determinar em que medida os países nos quais elas operam tem as ferramentas suficientes para tributá-las em proporção à escala da atividade que elas desenvolvem nesses países. E o que o relatório vai mostrar com esses dados, é como as regras têm falhado nessa alocação entre atividade econômica e  capacidade de tributação nos estados.

Grazi: Estima-se que aproximadamente 495 bilhões de dólares por ano é o que o mundo perde por conta dessas falhas nas regras tributárias que deveriam conter os abusos das multinacionais, aponta o relatório.

Música

Dani: As multinacionais estadunidenses são as que mais escondem lucros em países que atuam como esconderijos fiscais para não pagar impostos sobre eles nos países onde atuam e geram seus lucros. A informação está no Estado da Justiça Fiscal 2025 da Tax Justice Network. Como elas fazem isso, Grazi?

Grazi: Elas tiram os lucros dos países onde deveriam contribuir com impostos e os transferem para jurisdições onde a tributação é baixa ou nula. É a chamada transferência de lucros. Para isso, estas multinacionais abrem uma subsdiária em um esconderijo fiscal, que pode ser por exemplo Holanda, Luxemburgo ou Reino Unido, . Depois essa subsidiária, que é uma espécie de filial, passa a cobrar custos das outras filiais no mundo onde a economia real acontece.

Livi Gebase: Eu sou a Livi Gerbasi, eu sou pesquisadora do CICTAR, que é um centro de pesquisa que apoia lutas sindicais de movimentos sociais com dados financeiros e tributários sobre as grandes multinacionais.

Dani: O trabalho da  Livi no CICTAR é procurar os abusos que as multinacionais tentam mascarar em seus relatórios financeiros. De acordo com ela, os lucros disfarçados de custos costumam aparecer de três formas:

Livi: Patentes é um dos métodos mais tradicionais, porque patentes é uma coisa super difícil de tu mensurar quanto você vai cobrar pelo uso de uma patente, o uso de uma marca, o uso do brand da empresa. A outra coisa são esses nomes genéricos que não dizem nada. Taxas de gestão, taxas de consultoria, administração, gastos gerais. E o terceiro, que ultimamente é o que eu mais tenho visto, são as dívidas.  Essa subsidiária vai cobrar em dólar, e vai cobrar numa taxa de juros muito mais alta do que de um banco normal aqui no Brasil, ou um banco não relacionado cobraria por esse empréstimo.

Grazi: Por que uma empresa cobraria juros tão altos dela mesma?

Livi:  Então, é que, na verdade, esse empréstimo tem o principal objetivo de tirar recursos dessa subsidiária no país produtivo e colocar no paraíso fiscal.

Dani: Estas transferências de lucros realizadas por multinacionais custaram ao mundo quase meio trilhão de dólares.

Livi: Pensando em contabilidade, primeiro vem o pagamento da dívida, o pagamento da patente, depois vem o pagamento do imposto.  Então, se ela consegue tirar esses recursos daqui antes de chegar no seu lucro, o seu lucro vai estar pequeno. E muitas vezes a gente ouve que as empresas não estão lucrando. Essa falta de lucro é fabricada.

Grazi: Se uma multinacional consegue forjar que não tem lucro para não ser taxada,  escapa ou paga bem menos do que deveria pagar de imposto de renda. A população do país onde a multinacional não paga o imposto  é afetada.

Livi: Se essas grandes multinacionais não estão pagando e a gente está pagando, elas estão ficando mais ricas e a gente está ficando mais pobre. Então, aumenta o gap entre ricos e pobres, entre as multinacionais e as pequenas empresas.

Dani: No caso do Brasil, as pequenas e médias empresas ficam em uma situação bem desigual em relação às multinacionais, já que contribuem de maneira justa e não têm condições de abrir uma subsidiária num esconderijo fiscal e tirar o lucro daqui.

Grazi: Com os abusos fiscais das multinacionais, perdem o país, a sociedade, as pequenas e médias empresas… e também os trabalhadores e trabalhadoras destas multinacionais:

Livi: Muitas vezes esses trabalhadores ouvem do patrão que não tem dinheiro, porque não tem lucro. Se não tem lucro, não tem como fazer distribuição.  No Brasil a gente tem os programas que repartem parte dos lucros para os trabalhadores, além dos salários, benefícios, etc. Na verdade tem dinheiro sim. Esse dinheiro só está escondido lá no paraíso fiscal nas Maldivas.

Dani: Para acabar com estes abusos, o Estado da Justiça Fiscal 2025 recomenda a divulgação do Relatório país por país. Nele, as multinacionais informam lucros, quantidade de trabalhadores e quanto pagam de impostos em cada lugar onde operam.

Livi: Então, quando a gente tem esses dados, fica muito claro: opa, tem uma subsidiária da empresa X nesse paraíso fiscal que tem três funcionários e cada funcionário fatura dois milhões de dólares. Não precisa ser nenhum especialista em justiça fiscal para entender que tem um problema aí, que essa galera não é tão produtiva assim.

Grazi: A maioria das multinacionais já faz relatórios país por país. Elas estão sediadas em países que fazem parte da OCDE, que obriga que estas multinacionais entreguem estes relatórios. Mas divulgar estes dados é fundamental para expor os abusos que as multinacionais cometem.

Livi: A gente já tem várias multinacionais que já estão fazendo a declaração país por país de maneira voluntária, tem empresas que têm orgulho de pagar seus impostos onde de fato a economia está acontecendo, então já existem diretrizes e já existem empresas fazendo isso e mostrando que sim, é possível ser lucrativa e pagar seus impostos devidos.

Dani: Outra medida apontada pelo relatório Estado da Justiça Fiscal para conter os abusos é a Taxação Unitária, ou seja, para que a multinacional seja tratada como uma única empresa. Sendo tributada de maneira global, não tem como escapar da tributação onde quer que opere.

Livi: Elas já declaram os lucros globais delas.   para conseguir seus investidores, entrar nas bolsas, etc. Então, se a gente já tem esse dado, é só calcular a presença real dessas empresas nesses vários países, e a presença real também é fácil de calcular, normalmente se olha trabalhadores, vendas e ativos que a empresa tem no próprio país.  Então, se calcula, olha  20% dos lucros dessa empresa vem desse país.  Então, esse país vai poder taxar 20% dos lucros de acordo com a sua taxação, com a sua alíquota.

Grazi: As condições técnicas para que multinacionais contribuam de maneira justa já estão dadas… Mas ainda precisam ser aplicadas, já que agora as regras de tributação internacional ainda deixam muitas brechas.

Música

Dani: Multinacionais são empresas enormes, com equipes de contadores, tributaristas, advogados, que só pensam, vivem e trabalham para fazer com que os lucros para os acionistas sejam cada vez mais altos. E se valem das brechas nas legislações para tornar isso possível.

Música

Grazi: Mas a partir de 2026 essa história pode mudar. É que a Austrália vai tornar público os relatórios país por país das multinacionais que operam  lá.

Marcio Calvet Neves: Se o Fisco Australiano publica essas informações no seu site, qualquer um vai descobrir exatamente quantos empregados aquela empresa tem na Austrália, Quanto do lucro foi tributado na Austrália, mas também nos Estados Unidos, no Brasil, no Chile e tudo isso então assim é um baita avanço.

Dani: Esse é o Márcio Calvet Neves, advogado tributarista da área empresarial e que fez mestrado em gestão de políticas públicas na Austrália. Conhecer um pouquinho sobre como funciona a política pública australiana ajuda a entender as raízes da aprovação de uma lei para divulgar os relatórios país por país.

Marcio: Primeiro eu tenho que falar que eu morei em Melbourne, e Melbourne é uma cidade que tem uma característica mais progressista em relação ao resto da Austrália. Essa luta dos trabalhadores, ela é sempre muito presente ali na cidade, no estado de Vitória, e você consegue ver isso no dia a dia, por exemplo: os sindicatos não protegeram o sistema de bondes em Sidney, porque a força dos trabalhadores lá era bem menor. Em Melbourne, eles protegeram, não deixaram destruir o sistema de bondes e até hoje a cidade vive com os bondes. Se o bonde entra em greve, a cidade pára.

Grazi: Investir em transporte público é outro bom exemplo que vem de Melbourne, na Austrália.

Márcio: A gente vê essa ideia progressista, contaminando a população mais nova, então eles estão sempre muito na rua protestando, a favor das causas climáticas.

Dani: Como qualquer outro país colonizado, os povos originários também foram massacrados na Austrália e só nas últimas décadas que o país tenta se reconciliar com os erros do passado. Multinacionais australianas também já cometeram abusos fiscais contra países do continente africano.

Márcio: Tem um relatório da Oxfam  que mostra como as mineradoras australianas tiraram um lucro que deveria ser tributado na África, para esse lucro não ser tributado em paraísos fiscais. Então com isso você prejudicou todo o sistema de saúde, de segurança, toda a economia africana.

Grazi: Multinacionais australianas causaram danos ao continente africano. Mas, a Austrália também sofre com as multinacionais, principalmente dos Estados Unidos, mas também da Europa. De acordo com o relatório Estado da Justiça Fiscal 2025 da Tax Justice Network, a Austrália é o terceiro pais mais prejudicado pela transferência de lucros das multinacionais estadunidenses. E a Austrália vem tentando reverter essa situação desde 2017, quando implementou a entrega do relatório país por país pelas multinacionais ao governo.

Márcio: Já existe no nível governamental, isso é, as empresas que atuam, por exemplo em países da OCDE, da comunidade europeia, mesmo dos Estados Unidos, eles têm que apresentar esse tipo de informação para os seus próprios governos e os governos trocam essa informação com os demais países.

Dani: Até agora esses dados de quanto as empresas lucram, quantas pessoas empregam e quanto pagam de impostos em cada país onde operam ficavam apenas nas mãos das autoridades tributárias.  A partir de 2026, qualquer pessoa com acesso a internet no mundo vai saber como está atuando qualquer empresa que opera na Austrália e tenha rendimentos maiores do que 6 milhões e meio de dólares.

Márcio: Isso significa que as empresas com atividades na Austrália passam a ser questionadas nas suas respectivas jurisdições também.

Grazi: O fisco australiano irá multar as empresas em cerca de 500 mil dólares por cada informação incorreta.

Márcio: São multas altas que vão fazer com que as empresas tenham que observar aquela legislação senão a penalidade vai ser cobrada. E o fisco australiano é reconhecido por ser muito efetivo.

Dani: Uma das empresas que vamos poder conhecer como atua, a partir da divulgação dos dados país por país, é a Coca-Cola

Márcio: Entra no site da Coca-Cola, você não consegue descobrir quanto de tributo ela paga para cada país em que ela atua. Você não consegue. É muito difícil o trabalho para você tentar desvendar o que é planejamento tributário válido, o que é planejamento tributário abusivo, é muito mais difícil em uma empresa assim. E a Coca-Cola é um bom exemplo porque é uma empresa gigantesca, americana, tem muita atividade na Austrália. Então, esse relatório por exemplo, atinge uma empresa como a Coca-Cola frontalmente, atinge as big techs frontalmente. Eu acho que a tendência é a Austrália começar a recuperar receita. 35:20

Grazi: Muitas multinacionais estadunidenses estão atacando a Austrália para impedir que os relatórios país por país se tornem públicos. Márcio, que lição os demais países podem aprender com a experiência australiana?

Márcio: A grande lição da Austrália é que ela está privilegiando a transparência.

Dani: O primeiro relatório que multinacionais devem apresentar às autoridades australianas e que será divulgado se refere ao período entre julho de 2024 e julho de 2025. A partir de julho de 2026 o fisco australiano passa a receber estas informações.

Márcio: A empresa tem uma responsabilidade não só com seus acionistas, mas com a sociedade onde ela atua, com seus empregados, com o meio ambiente.

Música

Grazi: Vivemos um momento histórico para o avanço da justiça fiscal. A nova lei australiana pode garantir mais transparência a partir da divugação dos relatórios país por país das multinacionais. As expectativas de mudanças também estão altas com a continuação das negociações da Convenção Tributária da ONU.

Dani: As normas tributárias internacionais foram elaboradas há mais de 100 anos. Só que não são efetivas para diminuir as desigualdades globais.  Algumas reformas ocorreram nos recentes 15 anos, mas a oportunidade de mudanças concretas, que beneficiem também os países do Sul Global, está em andamento com a Convenção Tributária da ONU.

Grazi: Em novembro de 2025 ocorreu em Nairobi, no Quênia, a terceira etapa de negociações da Convenção Tributária da ONU. A expectativa é que as regras internacionais para multinacionais que saírem de lá favoreçam todos os países onde as multinacionais operam.  Tecnicamente, espera-se mudar do padrão atual da OCDE, chamado de preço de transferência, para o modelo de tributação unitária e rateio por fórmula.

Dani: Preço de transferência é um conjunto de regras e cálculos fiscais que busca determinar o valor correto das transações realizadas entre a matriz e as filiais de uma multinacional, especialmente quando sediadas em países diferentes. Só que o cálculo é extremamente complexo, o que inviabliza o trabalho de muitas autoridades tributárias, especialmente dos países em desenvolvimento.

Grazi: Já o modelo de tributação unitária e rateio por fórmula tributa  multinacionais uma única vez, em vez de tratar cada filial ou subsidiária como uma unidade fiscal separada. A tributação unitária pode coibir a transferência de lucros, feitos pelas multinacionais entre as filiais nos países onde operam, para subsidiárias em esconderijos fiscais, com o objetivo de evitar o pagamento de impostos. A fórmula de rateio é o cálculo sobre como distribuir o direito de tributação entre os países que geram lucro à multinacional. Florencia Lorenzo:

Florencia: Alguns países historicam já adotaram medidas análogas a isso. No século XX, a Espanha tinha uma coisa que tinha algumas semelhanças com isso. Internamente dentro dos estados os Estados Unidos trabalha com isso. Então, a base tributária dentro dos Estados Unidos, ela é consolidada e distribuída a partir de uma fórmula.

Dani: Acontece que existe muita resistência por parte dos países membros da OCDE, já que se beneficiam do sistema atual. Como a maioria das multinacionais têm sede em países da OCDE, também atuam para manter a tributação do jeito que está.

Florencia: Tentar evitar esse caminho tem criado uma série de problemas que precisam ser trazidos para a discussão se a gente quer enfrentar esse problema da elisão e da evasão tributária, porque se você não coloca os custos da não transição nesse cálculo, que são muito altos, como o relatório vai indicar, você está defendendo o sistema sem ter que lidar com todas as implicações dele também.

Grazi: Essa é uma das principais razões para que o processo de construção de cooperação tributária internacional tenha saído da OCDE e ido para a ONU. Enquanto acontecem as negociações da convenção na ONU,  os países do norte global seguem argumentando que não se pode duplicar trabalho, que isso já foi discutido na OCDE ou que afeta a soberania desses países.

Florencia: Não faz sentido apresentar desafios políticos como um impedimento, porque eles dependem da criatividade política também, daqueles que estão ali negociando, e no geral eu acho que tem ocorrido alguns problemas no processo, mas alguns avanços importantes também. Eu acho que o que está acontecendo em Nairobi agora é um exemplo de que é possível, sim, sentar à mesa e discutir.

Música

Dani: A terceira negociação da Convenção Tributária da ONU ocorreu  de 10 a 19 de novembro de 2025 em Nairobi, no Quênia. As duas primeiras negociações ocorreram em Nova Iorque e foram mais organizativas e como “chuvas de ideias”. Em Nairobi é a primeira que se discute os documentos base. É também a primeira vez que acontece no continente africano. Liz Nelson, diretora da Tax Justice Network, acompanhou o processo:

Liz Nelson: A importância disso foi que esse processo foi iniciado pelo grupo africano. Foram eles que apresentaram a resolução para uma maior cooperação internacional em matéria tributária. Eles impulsionaram e pressionaram bastante esse processo. Houve uma participação significativa de partes interessadas da sociedade civil africana, de países africanos, de delegados de países africanos, e da academia que estão sediados em Nairóbi. Eu acho que isso ressalta um dos objetivos da convenção, que é a importância de estar na ONU para ter maior transparência e inclusão.

Grazi: Durante a Conveção em Nairobi diversas pessoas presentes fizeram uma ação dentro do plenário em defesa da justiça tributária e justiça climática. Isso ainda não tinha sido permitido dentro do plenário da Convenção em Nova York. Liz,  qual sua avaliação sobre o impacto da participação popular nas negociações tributárias em Nairobi?

Liz: Penso também que, em certa medida, isso começa a alterar a percepção do poder, atrai o olhar dos negociadores para a região,  para as reivindicações, para as abordagens que os países africanos adotam e como elas são cruciais para a redistribuição dos direitos tributários e para uma maior igualdade entre os países e dentro dos países. Havia mais de 130 representantes da sociedade civil e da academia presentes, número quase superior ao de delegados dos países. Um dos aspectos significativos foi o crescente interesse e preocupação em torno de uma maior equidade na tributação de multinacionais e dos super ricos, bem como uma maior capacidade de arrecadação de receita interna.

Dani: Quais foram os avanços nas negociações, Liz?

Liz: Acho que os delegado deixaram de lado ajustes superficiais e pequenas mudanças aqui e ali e começaram a analisar escolhas estruturais que, nas décadas passadas, moldaram a receita, o poder e a desigualdade. O que começamos a ver foi a Convenção sendo elaborada com alguns compromissos inovadores, como o que chamamos de alocação justa dos direitos de tributação. Muitos governos defenderam que os lucros fossem tributados também onde as atividades das multinacionais ocorrem, onde o valor econômico ocorre nos países de origem, o que não acontece atualmente.

Grazi: O relatório “Estado da Justiça Fiscal 2025” mostra: multinacionais estadunidenses, em especial as big techs, são as principais causadoras de abuso fiscal internacional.  Mas os Estados Unidos não estão participando das negociações da Convenção Tributária na ONU.

Liz: O importante na Convenção é que permita que essas questões de direitos tributários se concretizem e sejam sustentados pela transparência. Um dos pontos chave das políticas de transparência que abordamos no relatório sobre o Estado da Justiça Fiscal e  algumas das questões reais para os negociadores da Convenção Tributária da ONU – especialmente os que representam países da OCDE no Norte Global -, é se eles conseguirão trabalhar bem juntos, de forma cooperativa, para adotar medidas de transparência fortes e abrangentes, em particular em torno dessa política de transparência das multinacionais, chamada de relatório país por país.

Dani: Você já ouviu a Florencia e o Marcio falarem neste episódio sobre a importância da transparência tributária e do relatório país a pais das multinacionais.

Grazi: Liz, como foram as negociações em relação a tributação dos super ricos?

Liz: Houve bastante discussão sobre a tributação de indivíduos de alto patrimônio líquido. Os países concordaram que a ação doméstica não é suficiente e que a riqueza transfronteiriça exige cooperação. Também havia um consenso – e acho que foi o Brasil quem enfatizou – de que a taxação efetiva da riqueza precisa ser progressiva.

Grazi: Taxação progressiva significa que aqueles que ganham mais devem contribuir com mais.

Música

Liz: Eu acho que há um longo caminho a percorrer, mas realmente parece haver uma boa fé no ambiente, de que é possível construir. Vamos ter esperança.

Grazi: A elaboração da Convenção Tributária deve continuar em 2026 durante outras três reuniões presenciais.

Dani: Mais detalhes sobre a Convenção tributária da ONU e o relatório EStado da Justiça Fiscal 2025 estão no site da Tax Justice Network em inglês. O link está na descrição do episódio, em www.edasuaconta.com.

Música encerramento

Grazi: O relatório ”Estado da Justiça Fiscal 2025” mostra que entre 2016 e 2021,  as empresas multinacionais com sede nos EUA custaram aos países de todo o mundo 495 bilhões de dólares em impostos corporativos não arrecadados. Esse quase meio trilhão de doláres em perdas de impostos corporativos sofridas pelos países poderia ter sido evitado, segundo o estudo. O avanço na Australia de promover a transparência deles a partir de 2026 poderá nos ajudar a dimensionar ainda mais o cenário e buscar mais alternativas. Além de evitar a perda de recursos que não estão sendo tributados, é fundamental promover a distribuição desse montante. Se as multinacionais operam e fazem lucros em diversos países, também deveriam contribuir em todos eles por meio de uma tributação unitária com uma fórmula de rateio. Movimentos sociais, entidades e estudiosos do sul global estiveram mais presentes nas negociações da Convenção tributária da ONU, em Nairobi, no Quênia e na Conferência do Clima, em Belém no Brasil. A participação popular teve impacto positivo na disposição dos negociadores em avançar em acordos tributários e climáticos que sejam mais benéficos para as pessoas, o clima, o meio ambiente e a cooperação tributária internacional. Entretanto, os compromissos ainda foram bem modestos. Avançar por sistemas tributários mais justos é um caminho fundamental para combater as emergência climática e de desigualdade que afetam o planeta. Seguiremos acompanhando as negociações da Convenção tributária da ONU até que isso aconteça.

Música

Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A dublagem é de Railda Herrero. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David.  Um abraço e até o próximo.

Dani: Lembro você que em www.edasuaconta.com, você encontra a descrição e a transcrição completa, pode ouvir os episódios anteriores, assinar o nosso boletim e ficar sabendo em primeira mão quando um episódio é lançado. www.edasuaconta.com. Se preferir, envie um email para [email protected], com seu nome e número de telefone que a gente te inscreve em nossa lista de distribuição pelo whatsapp. Também estamos no facebook e no BlueSky. Um abraço a você que nos ouviu até a última palavra e até o próximo!


Outras Fontes

1

Relatório O Estado da Justiça Fiscal 2025 (em inglês)

2

Hub da Tax Justice Network sobre Convenção Tributária na ONU (em inglês)

3

#76 Tarifaço de Trump

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