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Alex Cobham
Diretor executivo, Tax Justice Network
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Beatriz Mamigonian
Professora de história do Brasil-Império e de diáspora africana nas Américas na Universidade Federal de Santa Catarina.
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Júlio Araújo
Procurador da república, Ministério Público Federal
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Priya Lukka
Macroeconomista e doutoranda na Universidade de Leeds
Diversas gerações de mulheres, homens e crianças que deveriam ser livres foram ilegalmente escravizadas. Os sistemas financeiro e tributário brasileiros foram alguns dos que se beneficiaram deste crime contra a humanidade.
O tráfico ilegal de pessoas no século 19 segue presente na forma de consequências nas vida das pessoas descendentes daquelas que foram escravizadas.
Como os sistema financeiro e tributário podem contribuir para a fundamental reparação? Este é o tema do episódio #54 do É da Sua Conta.
- A necessidade de apuração e debate sobre a responsabilidade de instituições financeiras no Brasil envolvidas com a escravização ilegal de pessoas no século 19, com a professora Beatriz Mamigonian, da Universidade Federal de Santa Catarina.
- Como conectar o maior crime contra a humanidade do século 19 com o atual Banco do Brasil? Júlio Araújo, procurador do Ministério Público Federal, fala sobre os próximos passos do inquérito para investigar o envolvimento do Banco do Brasil na escravização e tráfico de pessoas vindas do continente africano.
- O processo internacional de reparação e de remediação – enquanto o sistema neoliberal for sinômio de neocolonialismo – como Priya Lukka, macroeconomista.
- A tributação como instrumento de reparação e a reparação como princípio orientador da tributação, com Alex Cobham, da Tax Justice Network.
“ Da mesma maneira que a gente fala que o Banco do Brasil teve acionistas e diretores traficantes, a gente pode falar de famílias envolvidas na política, que são famílias de fazendeiros e detentores de pessoas escravizadas e não só fazendeiros, mas também traficantes: os maiores eram fazendeiros e traficantes. A ideia é pensar a escravização como algo que não acabou; está na estrutura do sistema”.
Beatriz Mamigonian, professora da Universidade Federal de Santa Catarina
“É importante criar uma situação em que haja um conjunto de reparações que possam ser consideradas justas do ponto de vista simbólico, de memória e de verdade, mas também do ponto de vista da compensação monetária e financeira sobre esse tema.”
Júlio Araújo, procurador da República
“Remediar, especialmente quando se trata da forma como a economia mundial está configurada, da sua governança e dos seus mecanismos de elaboração de regras, deveria significar que os ex-países colonizados, que são também os países que estão lutando com o próprio desenvolvimento, teriam mais controle sobre como desenvolver e gerenciar os mecanismos que cercam suas economias.
Priya Lukka, macroeconomista
“A primeira coisa que precisamos fazer é impedir que a escala da riqueza extraída do Sul para o Norte aumente ainda mais. Parar com isso agora parece cumprir o tipo de agenda de justiça fiscal com a tributação unitária e todas as diferentes medidas em torno da transparência.”
Alex Cobham, Tax Justice Network
É da sua conta é o podcast mensal em português da Tax Justice Network. Coordenação: Naomi Fowler. Dublagens: Cecília Figueiredo e Zema Ribeiro. Produção e apresentação: Daniela Stefano e Grazielle David. Download gratuito. Reprodução livre para rádios.
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Grazielle David: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas. Eu sou a Grazielle David.
Daniela Stefano: E eu a Daniela Stefano.
O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal.
Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.com e nos mais populares tocadores de áudio digital.
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Podcast Projeto Querino: E o Brasil foi onde o comércio negreiro tomou uma dimensão inédita. Já tinha tráfico no mundo. Outros países também traficavam e dependiam do trabalho escravo. Mas nenhuma colônia ou país no mundo recebeu tanta gente africana escravizada quanto o Brasil. Nenhuma. Das 12,5 milhões de pessoas africanas que foram arrancadas de seus lares, 5,5 milhões tinham o Brasil como o destino. É o triplo da América Espanhola inteira — de todos os nossos vizinhos aqui da América do Sul somados. É 12 vezes mais do que os Estados Unidos. O porto que mais recebeu escravizados no mundo ficava no Brasil: o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Não houve setor da economia brasileira que não tenha tido trabalho escravo. Não teve. Do comerciante ao grande latifundiário; do industrial ao médico. Desde sempre, foram mãos e mentes negras que enriqueceram famílias brancas que até hoje se beneficiam dessa riqueza. Na empresa Brasil, o trabalho é negro, e o lucro é branco.
Dani: Este é o Tiago Rogero, apresentador e idealizador do Projeto Querino, que conta, tambem com um podcast em oito episodios, a história do Brasil de maneira afrocentrada e dá uma boa base pra entender a necessidade da reparação. O link pra ouvir está em www.edasuaconta.com, na descrição do episódio #54.
Grazi: O tráfico ilegal de pessoas no século 19 segue presente na forma de consequências nas vida das pessoas descendentes daquelas que foram escravizadas.
Como o sistema financeiro e tributário pode contribuir para a fundamental reparação?
Este é o tema do episódio #54 do É da sua conta.
BG
Dani: E embora a escravização de pessoas tenha sido abolida oficialmente em 1888, desde 1831 a lei brasileira considera crime o tráfico de pessoas transportadas contra a própria vontade para serem escravizadas no Brasil.
Do marinheiro até o comprador de pessoas: quem estivesse envolvido estava praticando um crime já que o código penal brasileiro de 1830 via africanas e africanos que desembarcassem no Brasil como pessoas livres.
Sem fiscalização do governo brasileiro, os crimes de tráfico e escravização seguiram acontecendo. Estima-se que quase 1 milhão de pessoas entraram no Brasil dessa forma após 1831.
Grazi: Então, essa lei é a que deu origem à expressão “pra inglês ver” porque foi editada no Brasil por pressão da Inglaterra, mas não foi de fato colocada em prática, e o tráfico seguiu intenso.
A Inglaterra tinha diversos interesses econômicos para o fim do trafico de pessoas escravizadas no resto do mundo, porque já havia proibido-o e estava sofrendo concorrência do Brasil, que vendia cana de açúcar mais barata do que a produzida nas colônias britânicas, por que aqui se usava mão de obra não remunerada.
Além disso, pessoas escravizadas não tem dinheiro para consumir e isso atrapalhava a expansão do capitalismo que já estava mais forte na Inglaterra, com a primeira revolução industrial.
Dani: Assim, diversas gerações de homens, mulheres e crianças, que deveriam ser livres foram ilegalmente escravizadas e o sistema financeiro brasileiro foi um dos que se beneficiou desta atrocidade.
Quem explica é Beatriz Manigonian, professora de História do Brasil-Império e de diáspora africana nas Américas na Universidade Federal de Santa Catarina.
Beatriz você faz parte de um grupo de 9 historiadoras e 5 historiadores de 10 universidades brasileiras mais Pittsburg e Harvard que escreveram uma representação ao MPF demonstrando a necessidade de apuração e debate sobre a responsabilidade de instituições financeiras no Brasil envolvidas com a escravização ilegal de pessoas no século 19. O que motivou esse grupo de acadêmicos a “sair” da universidade e procurar o MPF?
Beatriz Manigonian: Enquanto até mais ou menos 2010 a gente podia ler sobre o Brasil Império sem mencionar o tráfico ilegal, mais recentemente é incontornável. Incontornavel tratar de Brasil Império sem dizer que o tráfico, apesar de proibido, continuou. E acho que isso foi atingindo mais gente.
Então foi em diálogo com os procuradores que essa representação foi formulada. A ideia é que a gente abra essa conversa porque a gente não pode assumir que a gente já sabe que o Estado brasileiro era fundado na escravidão, que as fortunas eram fundadas na escravidão. Sim. Mas a gente já tem capacidade de fazer distinção entre maiores e menores, entre incentivadores do comércio ilegal e críticos do comércio ilegal.
Grazi: Essa representação deu origem a um inquérito sobre a relação do Banco do Brasil com o tráfico ilegal de pessoas vindas do continente africano para serem escravizadas e que está sendo amplamente repercutida na mídia nacional.
Na representação escrita por vocês, consta que cada pessoa escravizada e vendida dá início a uma cadeia de empréstimos e dívidas que fez com que o capital, na forma de seres humanos, circulasse amplamente pela economia e alimentasse uma série de outros negócios.
Beatriz: O que a gente está tentando demonstrar como a centralidade que o banco atinge na economia brasileira com o que pretendia ter no segundo Banco do Brasil, fundado em 1853, era completamente lastreado na escravização de pessoas e capitais vindos do tráfico.
Dani: A história oficial do Banco do Brasil conta que foi fundado em 1808, depois da chegada da família real portuguesa. Foi dissolvido em 1829 por dificuldades financeiras e a segunda refundação, em 1853, é quando a ligação do Banco do Brasil com a escravização ilegal fica mais estreita.
A Beatriz explica de que forma a economia era lastreada em pessoas escravizadas:
Beatriz: Por exemplo, entre os bens penhorados nas ações no Rio de Janeiro 65% das cobranças de dívidas em função de bens penhorados envolviam pessoas escravizadas, significando que quando havia uma cobrança na maior parte dos casos, esse bem seria uma pessoa recolhida ao depósito.
Dani: Você consegue imaginar?
Um ‘depósito de gente’?
Pessoas recolhidas, como se fossem objetos?
Beatriz: Era uma instituição que tinha funcionário, livro de entrada, anotação de entrada e saída. Deu o lugar na Rua do Valongo, que era a Rua do tráfico, a Rua do Comércio de escravos, a atual Rua Camerino, no Rio de Janeiro. Lá ficava o depósito público.
Depósito é o lugar onde alguém precisa estar, onde as coisas precisam estar recolhidas, seguras. Então eram bens recolhidos e pessoas. É um negócio absolutamente brutal.
Grazi: E o Banco do Brasil foi então beneficiado por esse comércio ilegal de pessoas livres, porem mantidas em regime de encarceramento:
Beatriz: Porque é capital vindo dos grandes comerciantes e das grandes fortunas e entre os grandes comerciantes, os maiores eram traficantes de escravos.
Dani: E se o tráfico de pessoas era proibido desde 1830, significa que a fortuna que ajuda a refundar o banco, em 1853, está diretamente relacionada com dinheiro sujo.
Beatriz: A gente usa o exemplo do maior contrabandista de todos, que era o José Bernardino de Sá. Português envolvido em 50 viagens. No começo do envolvimento dele no tráfico, o tráfico ainda era legal, mas em 30 ele já se torna ilegal. Nessas viagens, ele foi responsável pelo transporte de 19.000 pessoas forçadamente da África para o Brasil, para serem escravizadas ilegalmente. Ele ganha com esse que era um dos maiores negócios da Europa do século 19, o capital dele era imenso e ele tinha mais de 5000 ações do Banco do Brasil. Então ele é o maior acionista dessa refundação do banco.
Grazi: A pesquisa de vocês também indica que o banco arrecadou impostos sobre embarcações dedicadas ao tráfico de pessoas escravizadas. E a população vinda da África era tida como se fossse uma mercadoria tributada.
Ou seja, o império e o estado brasileiro também foram financiados com o dinheiro sujo da escravização de pessoas africanas…
Beatriz: Antes, no momento do comércio legal, havia uma cobrança chamada de meia cisa, era 0,5 do valor sobre as pessoas escravizadas, vendidas. Ela é estabelecida, se não me engano, logo na chegada da família rea. Esse era um imposto geral assim respeitadíssimo, era obrigado a pagar essa meia sisa. Ela não incidia sobre africanos novos.
A partir de 1833, existe um imposto chamado taxa dos escravos urbanos, que gerou uma matrícula. Então, as pessoas precisavam matricular aqueles que elas detinham como escravos. E essa taxa entrava para os cofres públicos.
Entrou pro fundo do tesouro também o aluguel dos africanos livres, aqueles que foram resgatados do tráfico e trabalharam por mais de 14 anos para particulares, que precisavam recolher esse salário ao tesouro.
Provavelmente o principal volume de arrecadação era de exportação. E aí sim, a grande produção exportada, sendo o café. Esse volume de impostos era recolhido sobre o volume de café produzido por pessoas escravizadas ilegalmente.
Grazi: Beatriz, qual o papel dos pesquisadores daqui pra frente, com relação à memória, verdade e reparação, em especial aos descendentes das pessoas africanas que foram escravizadas?
Beatriz: O nosso papel é, na minha opinião é orientar essa frente que se abre de pesquisa. Porque é o que a gente faz, né? é a nossa especialidade, a nossa pesquisa acumulada já leva para vários espaços de pontos e questões. Nessa pesquisa, a ideia é pensar não só a escravidão como a exploração do trabalho das pessoas, mas como estruturando um sistema econômico e um sistema político. Daí a discussão estrutural é: onde está a escravidão na estrutura? A gente pode pensar quantos juízes e desembargadores eram descendentes de senhores de escravos e senhores de café? Ee que forma a escravidão molda o Judiciário? Da mesma maneira que a gente estava falando que o Banco do Brasil teve acionistas e diretores traficantes, a gente pode falar de famílias envolvidas na política, que são famílias de fazendeiros e detentores de pessoas escravizadas e não só fazendeiros, mas também traficantes, os maiores eram fazendeiros e traficantes.
Então a ideia é pensar a escravidão como estruturante a esse sistema e onde ela pode ser ainda encontrada, de que maneira esse sistema é permeado e informado pela escravidão.
E estou dando um exemplo simples, a gente pode ir mais longe: de que maneira o conhecimento científico das faculdades de medicina e lastreado no racismo científico? E não só das faculdades de medicina, das faculdades de Direito, lastreado no racismo.
Então a escravidão está em mais lugares do que só na fazenda ou só no trabalho urbano.
E ela não acabou em 1888 porque essa herança ficou, na verdade ficou essa estrutura.
SOBE Música
Dani: Em 27 de setembro de 2023 o Banco do Brasil foi notificado pelo Ministério Público Federal sobre a abertura de um inquérito para investigar o envolvimento do banco na escravização e tráfico de pessoas vindas do continente africano durante o século 19.
Esta investigação é inédita no Brasil e pode ser vista como um primeiro passo na direção da reparação de um crime histórico, que deu origem a uma sociedade extremamente racista e desigual.
Quem detalha é Júlio Araújo, um dos procuradores da república responsáveis pela instauração do inquérito.
Júlio: A nossa preocupação é o olhar que nós estamos trazendo para esse tema, em diálogo com iniciativas que ocorrem no mundo inteiro é pensar todas essas instituições que podem ter sido constituídas e forjadas na escravidão,que é importante que nós saibamos esse papel e que a gente revisite esse passado para pensar concretamente o quão necessário é lançarmos luz e buscarmos formas de reparação concreta a esses episódios que aconteceram no passado.
Grazi: O MPF deu um prazo que se encerra neste mês de outubro de 2023 para que o Banco do Brasil se pronuncie especificamente sobre alguns pontos:
“a relação do banco com o tráfico de pessoas negras escravizadas”,
“informações sobre financiamentos realizados pelo banco e relação com a escravizacão”,
“informações sobre traficantes de pessoas escravizadas e sua relação com o banco”
“iniciativas do banco com finalidades específicas de reparação em relação a esse período.”
Já existem evidências que comprovam o envolvimento do banco, mas ainda tem muito a se pesquisar.
Caso seja confirmado que o Banco do Brasil foi fundado com o dinheiro de tráfico de pessoas vindas da África, como conectar a escravização do século 19 com o Banco do Brasil de 2023?
Júlio: O fato é que nossa história e nossa trajetória e a condução da sociedade brasileira tem na escravidão um motor fundamental, sobretudo do ponto de vista econômico. Acho que esse debate que a gente pode trazer pra essas instituições que tiveram esse papel decisivo e importante no tráfico de africanos, no tráfico transatlântico, na escravidão precisam enfrentar esse passado. Não apenas no campo da memória e da reparação simbólica, mas também no campo para pensar que tipo de atenção e enfrentamento de tudo o que a escravidão gerou no Brasil e também o racismo, o quanto que essas instituições elas podem contribuir para superar esse passado trágico.
Dani: A escravização de pessoas é um crime contra a humanidade, ou seja, nunca prescreve e permite que ações relacionadas ao período ainda possam correr na justiça.
A reparação da escravização está começando em países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Júlio, o que significa esse inquérito para o processo de reparação no Brasil?
Julio: Eu creio que o mais importante nesse momento inicial é a gente desnaturalizar essa discussão e colocar na agenda esse compromisso das instituições em revisitar essa questão, que é o que está acontecendo em outros países. Colocar esse tema em discussão é uma forma de reparação; a forma como o banco se coloca para discuti-lo é uma forma de reparação. Avançar em pesquisas, discussões, análises sobre o tema, é uma forma de reparação. Então, esse é um processo que a gente de certa forma está iniciando, que está avançando, felizmente, e que tomara que gere reparações que efetivamente influenciem na vida das pessoas que direta ou indiretamente foram as mais afetadas pelo tráfico de pessoas escravizadas e pela escravidão.
Grazi: O Júlio disse ainda que o Ministério Público Federal considerou a representação das historiadoras e historiadores pertinente, analisou o tema à luz do debate sobre memória, verdade e justiça e com base nisso, pediu que o banco se manifestasse.
Júlio: O caminho que nós optamos é um caminho de construção pelo diálogo: ouvir o banco, fazer a escuta da sociedade civil, dos movimentos negros, dos pesquisadores; entender não só essa questão do papel, de colocar o tema na agenda, mas também de ouvir sobre possíveis formas de reparação. Isso pode ser construído dessa forma: coletivamente, de uma maneira que possa atender, esteja à altura da discussão e da questão. Mas caso isso não avance dessa forma, nós vamos ter que nos valer de outros mecanismos para buscar esse tipo de reparação. No caso do Ministério Público Federal, o inquérito civil, ele é um instrumento extrajudicial que pode gerar um acordo, pode gerar recomendações e, caso ele não se concretize, pode gerar demandas na Justiça.
Dani: E como se darão as reparações, na prática?
Júlio: Pra nós, é importante criar uma situação em que haja um conjunto de reparações que possam ser consideradas justas do ponto de vista simbólico, de memória e de verdade, mas também do ponto de vista da compensação monetária e financeira sobre esse tema. O que que seria justo e quanto que se deve a quem se deve pagar e como isso deve ser feito é algo que está posto que o Ministério Público não quer se arvorar prioritariamente na posição de quem vai dizer como isso deve ser feito.
SOBE BG
Grazi: A reparação é um processo que está começando a acontecer em diversas partes do mundo.
Para compreender um pouco mais do processo internacional conversamos Priya Lukka, macroeconomista das Nações Unidas no escritório regional da Asia, e doutoranda na Universidade de Leeds, na Inglaterra:
Priya Lukka: Muitos especialistas e ativistas dizem que é um reconhecimento aos danos históricos e uma reflexão sobre de onde pode vir a reparação ou redistribuição, ou como ela pode ser concebida. E há também as Diretrizes Básicas e a Estrutura da ONU sobre o Direito à Remediação e à Reparação, estabelecidas como parte da Estrutura Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário. Assim restituição, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição. É este tipo de reconhecimento contínuo do passado e das injustiças contínuas cometidas.
Dani: Os especialistas e ativistas evidenciam que o sistema econômico, em especial o neoliberalismo, replica o processo de colonização: uma neocolonização.
Ou seja, a real reparação só é possível se as estruturas do sistema econômico forem modificadas.
Priya: Este poder neocolonial é muito importante quando se pensa em como esta economia global se tornou o que é. E as regras globais da política macroeconômica continuam a ser elaboradas no que conhecemos como mecanismos da elite, em que muitos países são os destinatários das decisões tomadas sobre eles, ao inves de serem capazes de influenciar ativamente a direção política dos próprios países.
Grazi: E como se poderia remediar essa situação enquanto o neoliberalismo for também sinônimo de neocolonialismo?
Priya: Remediar, especialmente quando se trata da forma como a economia mundial está configurada, da sua governança e dos seus mecanismos de elaboração de regras, deveria significar que os ex-países colonizados, que são também os países que estão lutando com o próprio desenvolvimento, teriam mais controle sobre como desenvolver e gerenciar os mecanismos que cercam suas economias.
Dani: No sentido de os países do Sul tererm controle sobre o próprio desenvolvimento, existe um amplo movimento que demanda reparação com relação à dívida pública dos países do norte para com os países do sul global.
E também de dívidas contraídas pelos países do Sul através de empréstimos privados, e os realizados por meio do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.
Priya: Há muitos motivos para cancelar a dívida, pensando realmente na economia política de como os países enfrentam opções limitadas para assumir tal dívida. Por exemplo, o que existe nas políticas de financeirização da arquitetura global que levam a esses resultados? Portanto, trata-se mais de olhar para as maneiras pelas quais os mecanismos simples, de império, controle transi cionaram e se transformaram realmente em colonialidade econômica. E dentro disso ainda existe muita subordinação financeira.
Grazi: Voltando ao caso do inquérito para buscar reparação junto ao Banco do Brasil…
Dentre as possibilidades de reparação está a compensação financeira.
O Banco do Brasil é um dos principais bancos públicos do país, sendo muito importante até mesmo para resistir à dominação dos grandes bancos privados no mercado e na economia.
A reparação tem que ocorrer, de qualquer forma. Agora, como fazer a reparação e permitir que o Banco do Brasil siga fortalecido como uma empresa pública importante para a população brasileira?
Priya: Existem princípios financeiros que regem todos os bancos do setor público e existem reservas saudáveis que eles ainda precisam manter. Obviamente, isso seria algo que existe para garantir a estabilidade financeira das instituições. Mas não creio que o debate sobre se as reparações podem funcionar ou se são devidas começa com: elas podem ser pagas? Na verdade, penso que começa mais com uma espécie de ideia do que significa justiça e como podemos nos esforçar para alcançar a justiça, e que tipo de processo a justiça poderia ser a partir da centralização da agência de grupos e comunidades vitimizados e afetados. E no caso do Banco do Brasil, pessoas que foram traficadas, pessoas que são descendentes de indivíduos que foram traficados, e o que isso significou para os tipos de desigualdade derivados dessa privação histórica pela qual o Banco do Brasil foi culpado.
Dani:A primeira reportagem a respeito do inquérito foi publicada pela BBC News e assinada por Leandro Machado. O Banco do Brasil enviou nota à redação da BBC na qual informa ser uma empresa que busca promover a igualdade racial e que deve colaborar com todo o processo da investigação.
O link para a reportagem, onde também se lê a nota do Banco do Brasil, está na descrição completa deste episódio, em www.edasuaconta.com
Grazi: Para garantir reparação também se defende que é essencial pensar em incorporar uma abordagem onde haja participação, transparência e responsabilidade durante todo o processo e que seja centrado em responder aos interesses das vítimas.
Priya: E a abordagem das Nações Unidas para Reparações coloca definitivamente essa ênfase na autotransformação dentro do processo. Então, acho que o ponto de partida é: o que significaria estabelecer um processo para determinar quais danos foram causados? E então eu acho que tem que ter membros de diferentes comunidades conduzindo o processo.
Dani: Priya, de que forma a tributação pode promover reparação?
Priya: Existem tantas ideias políticas realmente importantes que já refletem o que seriam soluções equitativas e que melhoram a solidariedade global e uma espécie de avanço nos domínios da justiça econômica. Um tipo de convenção tributária na ONU, que lute contra as políticas que permitem fluxos financeiros ilícitos, analise a viabilidade política de um imposto sobre transações financeiras e sobre a riqueza, essencialmente. Todas estas são ideias fundamentais que penso que realmente refletem uma abordagem de reparações.
Grazi: E por falar nisso, no segundo comitê das Nações Unidas, que trata de temas econômicos e financeiros, a Nigéria, em nome do grupo africano, apresentou uma resolução na qual requer uma convenção tributária vinculante e um organismo tributário na ONU.
Isso pode dar mais poder às nações sobre as regras internacionais de tributação que atualmente favorecem aos países mais poderosos que, em geral, costumam ser os países colonizadores que fizeram muito dinheiro às custas do tráfico e das pessoas que se tornaram escravizadas.
Os países membros das Nações Unidas devem votar isso no final de novembro de 2023 e em dezembro definir o orçamento.
SOBE BG
Dani: Para promover a justiça fiscal, a Tax Justice Network defende os 5 R’s da tributação. Se é a primeira vez que você ouve o É da Sua Conta, vou resumir pra vc:
O primeiro é o que todo mundo conhece – receita, que é quanto o governo pode arrecadar.
O segundo é Redistribuição, para reduzir as desigualdades;
Depois vem a Representação, para construir processos democráticos mais saudáveis, entre governos e contribuintes;
em seguida Reprecificação, para limitar comportamentos prejudiciais, como o consumo de tabaco e as emissões de carbono, e que foi tema do episódio #53.
E o R incorporado mais recentemente é o da Reparação, por exemplo aos países historicamente explorados como colônias, inclusive por meio da tributação.
Alex Cobham, diretor executivo da Tax Justice Network, fala sobre a Reparação para a Justiça Fiscal.
Alex Cobham: Ao olhar para o papel dos impostos ao longo dos últimos, digamos 500 anos, realmente os impostos têm sido muitas vezes usados como uma ferramenta de extração imperial.
E há um papel nítido dos impostos no grau de desigualdades globais, não apenas as atuais desigualdades nos direitos de tributação, mas as desigualdades históricas na riqueza e nos padrões de vida que resultam, em parte, de como os impostos foram usados, tanto pelas administrações coloniais como pelos empresas coloniais, como a Companhia das Índias Orientais, por exemplo, assumindo os direitos de tributação de todo um país, ou de um conjunto de países, e usando-os literal e explicitamente para extrair riquezas e levar de volta à metrópole. Portanto, o argumento das reparações, por fazer parte da agenda tributária, tem uma base forte.
Grazi: O processo para levar as dicussões sobre reforma tributaria internacional da OCDE, que é o clube dos países ricos, para as Nações Unidas poderia ser uma medida de reparação, já que permitiria a todos os países membros terem voz e voto, o que possivelmente levaria a acordos mais benéficos para todos, e remediadores de séculos de colonialismo e exploração, inclusive pela tributação.
Alex: A primeira coisa que precisamos fazer é impedir que a escala da riqueza extraída do Sul para o Norte aumente ainda mais. E o atual sistema fiscal, ao longo dos últimos 100 anos, tem favorecido muito deliberadamente a extração de riqueza, não através, diretamente, da violência imperial, mas ao permitir que multinacionais sediadas no Norte global continuem a extrair riqueza, não tributada ou subtributada, do Sul. Parar com isso agora parece cumprir o tipo de agenda de justiça fiscal, tributação unitária e todas as diferentes medidas em torno da transparência.
Dani: Um exemplo que o Alex deu sobre reparação é através da tributação unitária, que ainda não foi implementada, mas se as regras atuais de tributação internacional continuarem como estão, os favorecidos seguirão sendo os países de alta renda.
Na tributação unitária, a multinacional é vista como uma única empresa e os países a tributam de acordo com seu direito de tributação, seja por sede da corporação ou pelas atividades da mesma em seu país;não como diversas empresas com filiais em diferentes países, e com transferencia lucro para paraísos fiscais e sem contribuir de fato com impostos em nenhum país.
Assim, para a reparação, será importante implementar a tributação unitária junto com uma diminuição dos direitos de tributação sobre corporações multinacionais de países de economias avançadas como o Reino Unido ao mesmo tempo em que se aumenta esses direitos de tributação aos países do Sul Global.
Então, se 10% das atividades de uma multinacional são no Reino Unido, sob uma tributação unitária, 10% dos lucros dela deveriam ser tributados no Reino Unido. Mas, e se desses 10%, o Reino Unido só tributasse 9% e ooutro 1% se transformasse em um fundo para ser amplamente distribuído entre os países do Sul global?
Com este potencial ao longo de um período de décadas poderia se remediar os séculos de extração.
BG Fechamento
Grazi: O processo de reparação tem distintos mecanismos, passa por visibilizar o que ocorreu, reconhecer o dano, entender os efeitos imediatos e contínuos causados e buscar remédios.Tudo isso centrado e orientado pelas vítimas.
Colocar os sistemas tributário e financeiro sob a lente da reparação é fundamental e possível. Para reconhecer os danos causados aos países do sul global, a grupos populacionais específicos, e com isso buscar os mecanismos de reparação.
No sistema tributário internacional vivemos uma oportunidade histórica nas Nações Unidas de adotar uma Convenção Tributária que permita a todos os países membros terem direito a definir os rumos, e não só sofrer as consequências das definições e serem uma vez mais lesados.
É fundamental que todas as pessoas possam pressionar seus governos a apoiarem a Resolução apresentada pela Nigéria em nome do grupo africano por uma convenção tributária vinculante e um organismo tributário na ONU.
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Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. Dublagens de Cecilia Figueiredo e Zema Ribeiro. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David.
Um abraço e até o próximo.
Dani: Um abraço e até mês que vem!