#78 Abusos fiscais no centro da crise hídrica e climática
#77 É urgente justiça tributária no Brasil
#79 Multinacionais dos EUA: as que mais cometem abusos fiscais
Convidadxs
  • Andrés Arauz

    Consultor da i3T e pesquisador sênior do CEPR. Atuou como estatístico da balança de pagamentos do Banco Central do Equador, consultor de política financeira do Ministério da Política Econômica do Equador, diretor de operações do Banco Central do Equador, subsecretário de investimentos públicos, subsecretário de planejamento da Secretaria Nacional de Planejamento do Equador, diretor-geral do Serviço Nacional de Compras Públicas do Equador e ministro do Conhecimento e Talento Humano do Equador. Foi candidato à presidência e à vice-presidência.

  • Flávio Batista

    Pesquisador de direitos humanos e líder comunitário em Goiás, Brasil. Presidente do Instituto Cerrado Nativo, uma organização dedicada à justiça social, sustentabilidade ambiental e desenvolvimento cultural. Doutorando em Direitos Humanos com foco em escravidão, tributação e desigualdade racial no Brasil do século XIX.

  • Livi Gerbase

    Pesquisadora-chefe do CICTAR (Centro Internacional de Transparência e Pesquisa em fiscalidade corporativa) para a América Latina e o Caribe

  • Sabrina Fernandes

    Economista política, socióloga e autora ecossocialista brasileira. Chefe de pesquisa do Instituto Alameda e consultora sênior de pesquisa do TIDE Centre da Universidade de Oxford. É membra do Pacto Ecosssocial do Sul na América Latina e faz parte do comitê editorial do NACLA Report.

Equador, Brasil e o Cerrado brasileiro são locais onde empresas encontram jeitinhos de burlar as regras e prejudicar o meio ambiente e as pessoas. No episódio #78 do É da Sua Conta: três exemplos nos quais a justiça fiscal pode combater a degradação ambiental, a privatização e promover o bem estar das pessoas.

No episódio #78 do É da Sua Conta:

  • A escassez de água causada por mineradoras no Equador, com Andrés Arauz
  • Empresas de saneamento básico utilizam incentivos fiscais para privatizar o setor, com Livi Gerbase
  • Benefícios fiscais para o agronegócio, que desmata o Cerrado, com Flávio Batista
  • Como países do Sul Global podem se livrar do sistema de arbitragens do Banco Mundial, com Andrés Arauz
  • Recomendações para uma transição climática que promova uma economia que sirva às pessoas e ao planeta, com Sabrina Fernandes

“O incentivo fiscal está sendo usado para subsidiar a privatização e concessão de empresas de saneamento  e não para expandir a infraestrutura, que era o objetivo inicial.”
~Livi Gerbase, CICTAR

“Onde houve renúncia fiscal, houve aumento da fronteira agrícola, expulsão de indígenas, camponeses, quilombolas e  aumento de temperatura por conta de todo o problema ambiental que os desmatamentos ocasionam no Cerrado.”
 ~Flávio Batista, Instituto Cerrado Nativo

“O CIAD é um sistema de disciplina absolutamente neocolonial no qual 92% dos casos vêm de transnacionais do norte global que processam países do sul global.”
 ~Andrés Arauz, i3T e CEPR

“Nós temos a capacidade de fazer essa transição e fazê-la de forma justa; os recursos financeiros existem, eles precisam ser arrecadados e apropriados com propósito.”
Sabrina Fernandes, Instituto Alameda

Transcrição

Música de abertura

Grazi: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas e o planeta. Eu sou a Grazielle David.

Dani: E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal.

música abertura

Grazi: Abusos fiscais no centro da crise hídrica e climática é o tema do episódio #78 do É da Sua Conta.

música

Dani: Com você deve ser a mesma coisa: todo mês chega um monte de boletos. Um deles é o da “conta da água”, cobrado pelo serviço de fornecimento de água e pela coleta e tratamento de esgoto. O valor que a gente paga é usado para cobrir custos operacionais, de manutenção, expansão dos serviços e investimentos em saneamento básico.

Grazi: Desde 1997 existe a política nacional de recursos hídricos. Esta política instituiu que qualquer empresa ou pessoa que utilize água para sua atividade econômica que cause impacto sobre a quantidade e/ou qualidade da água deve possuir uma autorização para isso. É a Outorga de Direito de Uso da Água. A partir dela se avalia a necessidade de pagar a cobrança pelo uso da água.

Dani: Indústria, mineradoras e agronegócio, por exemplo, precisam dessa outorga. Quem usa mais água ou polui mais água por um objetivo econômico também deve pagar mais pelo uso de água.

Grazi: Acontece que tem muitas empresas que, além de buscar formas de pagar menos impostos, também busca formas de pagar menos essa cobrança pelo uso da água, embora use ou contamine muito a água.

Dani: Equador, Brasil e o Cerrado brasileiro são exemplos de locais onde empresas encontram jeitinhos de burlar as regras e prejudicar o meio ambiente e as pessoas. Neste episódio você escuta sobre três exemplos nos quais a justiça fiscal pode combater a degradação ambiental, privatização e promover o bem estar das pessoas.

Música

Grazi: Até uma década atrás, a economia do Equador era muito dependente da exportação do petróleo. Depender menos de combustíveis fósseis é um passo importante na transição energética, já que a queima de petróleo, carvão e gás natural é a principal causa do aquecimento global.

Dani: Só que essa transição precisa ser feita de maneira adequada, o que não ocorreu no Equador. Andres Arauz, ecconomista e ministro do Conhecimento  e Talento Humano do Equador entre 2015 e 2017.

Andres: O Equador debilitou sua capacidade industrial de refinamento de seu petróleo e aprofundou a dependência, em parte por interesses muito grandes e poderosos, precisamente dos traders do petróleo e da gasolina, que são os que mais lucraram deste debilitamento produtivo do Equador.

Trecho de reportagem: Crece la incertitumbre en Ecuador tras cumplirse 29 dias de paro nacional

Grazi: Essa reportagem informa que já faz mais de um mês que estão ocorrendo paralizações generalizadas no Equador. A causa inicial foi o fim do subsídio ao diesel, que fez com que os combustíveis ficassem mais caros para a população. Os protestos continuaram e as pessoas passaram a exigir outras demandas, mesmo com reações violentas por parte do governo, que deixaram diversos feridos e 3 mortos.

Dani: O Equador está independente da extração de petróleo, mas a transição tenha sido feita de maneira inadequada. Agora, o país passou a exportar produtos agrícolas e mineração. O problema é que esses dois setores requerem altos volumes de água.

Andrés: O Equador é um país muito rico em água mineral. Entretanto, 80% da água que nasce nas montanhas dos Andes vai para a Amazônia.  Só que 55% da população está na costa do Pacífico, do outro lado, e só recebe 20% da água por essas causas naturais. Isso significa que há muita tensão sobre como é distribuída a pouca água que vai para o Ocidente, até o Pacífico. No marco dessa tensão, que sempre existiu, mas que se pode lidar, agora temos um novo setor, que é a mineração: da grande mineração, mas também da mineração informal ou, em alguns casos, mineração ilegal vinculada ao crime organizado. A mineração está gerando um dano ambiental profundo, utilizando e desviando a água de como deveria ser usada: para consumo humano e para irrigação.

Grazi: O acesso a água em parte do Equador já é escasso. Agora a população precisa disputar esse recurso natural com grandes empresas multinacionais agrícolas e da mineração

Trecho de reportagem sobre manifestação em Cuenca

Dani: Ouvimos duas mulheres enquanto participaram do protesto que reuniu mais de 60 mil pessoas em Cuenca, terceira maior cidade do Equador. A primeira mulher diz que participa da manifestação por defender a água, que é muito mais importante do que o ouro. Ouro não se bebe, água se bebe. A outra  diz que protesta em defesa da água, que é vida.

Andres: Existir um projeto de mineração ali representa uma ameaça direta à sobrevivência individual e coletiva dos cidadãos de Cuenca. Foi o que levou à essa mobilização massiva e uma pressão para que o governo revogue ou anule as autorizações ambientais e de exploração de minérios do Projeto Loma Larga, da mineradora canadense Dundee Precious Metals.

Grazi: O que é mais importante: destinar água para a sobrevivência humana ou para a agroexportação e mineração extrativa feita por multinacionais que sequer são equatorianas?  Não existe vida sem água. E embora o uso de combustíveis fósseis seja uma ameaça à vida, o caminho encontrado para sair dessa dependência tem sido através da eletricidade, que requer muitos minérios. E extrair minérios requer muita água. Como encontrar um caminho que permita desenvolvimento econômico, social e ambiental simultaneamente?

Trecho do documentárioEnchente Rio Taquari

Livi: Eu sou a Livi Gerbasi, eu sou pesquisadora no CICTAR, que é um centro de pesquisa que apoia lutas sindicais com dados tributários e financeiros sobre as grandes multinacionais. Eu sou de Porto Alegre, meu sotaque entrega, e com toda a questão das enchentes ano passado ficou muito claro como o acesso à água e ao saneamento de qualidade é fundamental nesses momentos de crise climática aguda. Toda a questão da invasão da água nas cidades é também um problema de saneamento, um problema de drenagem, que vai ter que ser pensado e repensado.

Dani: A solução para a drenagem de águas em enchentes passa por melhorias na infraestrutura de saneamento básico ou até mesmo na implementação em locais ela não existe. Melhorias na infraestrutura requerem planejamento e investimento. O governo tem utilizado incentivos fiscais para promover as agendas de políticas públicas e de questões climáticas. É o caso das debêntures incentivadas.

Grazi: Debênture é uma dívida que a empresa faz no mercado financeiro na bolsa de valores. Se a empresa é de algum setor prioritário para o governo federal, como saneamento básico, mobilidade ou energia o governo dá um incentivo em cima dessa dívida.

Livi: Ela pega essa dívida no mercado e tudo que ela pagar de juros ela pode descontar o imposto de renda.

Dani: Isso significa que algumas dessas multinacionais que estão colocando em risco o acesso das pessoas à água estão usando isso para pagar menos impostos — impostos que precisamos que sejam pagos para resolver alguns dos problemas que as multinacionais estão causando! A ideia desse incentivo fiscal oferecido pelo governo federal era que as empresas do setor de saneamento investissem em saneamento.

Grazi: No Brasil, 35 milhões de pessoas não contam com abastecimento de água tratada, enquanto 104 milhões não dispõem de coleta de esgoto. Metade dos esgotos coletados são despejados sem nenhum tratamento em rios, córregos, lençóis freáticos, mar. E isso causa  impactos diretos no meio ambiente e na saúde da população.

Dani: Só que no Brasil, as empresas estão usando os incentivos fiscais em leilões que privatizam as empresas estatais de saneamento básico. Ou seja: multinacionais estão usando dinheiro público pra comprar o direito de explorar a água e transformar uma empresa pública em privada. Dos quase 7 bilhões de dólares captados através de incentivos fiscais pelas empresas de saneamento na última década, quase 4 bilhões de dólares foram destinados aos leilões, de acordo com estudo do CICTAR, sigla em inglês para Centro Internacional de Transparência e Pesquisa em fiscalidade corporativa

Livi: Então a gente está chamando de sequestro do financiamento do saneamento básico, porque é uma situação muito alarmante. A gente não tem problema com o incentivo fiscal em si. O problema é que ele está sendo usado para subsidiar a privatização e concessão desses setores e não para expandir a infraestrutura que era o objetivo inicial dele.

Grazi: Privatizar a água e o saneamento significa uma política desastrosa para a população: contas mais caras, dividendos para acionistas, altos salários para os chefões e menos responsabilidades e direitos com a população.

Dani: Além de tudo isso, as empresas ainda usam incentivos fiscais para participar e ganhar dos leilões de privatização. Para a Livi Gerbase, pelo menos isso deveria ser proibido:

Livi: Seria uma mudança relativamente simples no incentivo fiscal, mas que já limitaria bastante esse desvio de função dos recursos públicos.

Música

Grazi: No Cerrado brasileiro, empresas que causam desmatamentos, que é a principal causa de emssão de gás carbono no Brasil, ainda recebem incentivos fiscais.

Flávio: Eu sou Flávio Batista, sou pesquisador, sou professor, estou terminando agora o doutorado lá na Universidade Federal de Goiás e uma das minhas áreas de interesse é a tributação.

Dani: O Flávio é também presidente do Instituto Cerrado Nativo.

Flávio: E o Cerrado é um ponto estratégico para o país e a gente acha que é importante observá-lo com o cuidado que ele merece

Trecho de vídeo de WWF: Cerrado: berço das águas

Grazi: Mas esta água vital para as nossas vidas está acabando

Trecho de reportagem da BBC Cerrado, a floresta de cabeça pra baixo

Flávio: A concentração de terra na mão do agronegócio tem produzido o aumento de desmatamento do cerrado, desmatamento esse que não é televisionado. Então isso coloca em risco a nossa condição de acesso à água. E a concentração de terra permite com que você avance sobre a vegetação, destruindo e impossibilitando portanto que esse ciclo funcione de forma natural.

Dani: Quase metade das emissões de carbono são causadas pelo desmatamento no Brasil. O agronegócio, que causa esses desmatamentos, é um setor que recebe muitos benefícios fiscais e isenções de impostos.

Flávio: Os nossos dados, que são ainda dados preliminares, mostram que onde houve renúncia fiscal houve aumento da fronteira agrícola, consequentemente expulsão de indígenas, de camponeses, de quilombolas e também aumento de temperatura por conta de todo o problema ambiental que isso acabou ocasionando então os dados parecem nos mostrar que existe uma relação muito próxima onde você tem renúncia fiscal você também tem problema racial e problema ambiental

Grazi: A pesquisa do Flávio relaciona a histórica concentração de terras nas mãos de poucos no Brasil com a injusta estrutura de tributação:

Flávio: Porque só quem conseguiu acesso às renúncias, só quem conseguiu acesso político e crédito pôde estabelecer o seu poder e isso resultou em uma grande concentração fundiária e por consequência, também expulsou boa parte das pessoas do campo, o que foi entendido no Brasil, na segunda metade do século 20, como o grande êxodo rural.

Trecho de resumo da audiência das águas no Cerrado, da Campanha em defesa do Cerrado

Dani: Você ouviu duas pessoas representantes de comunidades tradicionais do Cerrado durante a Audiência das Águas, organizada pela Campanha em Defesa do Cerrado em 2021.

Grazi: Com a expansão do agronegócio, indígenas, quilombolas e camponeses tradicionais tem sido expulsos dos territórios onde viviam. O agronegócio frequentemente se utiliza de grilagem de terras, desmatamento e queimadas. Muitos incêndios acontecem no Cerrado entre agosto e outubro de cada ano. Só para ficar em um exemplo, mais de 111 mil hectares foram queimados apenas na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, entre setembro e outubro de 2025.

Dani: Além de serem forçados de sair das áreas rurais e viverem de maneira precária nos centros urbanos, índigenas, quilombolas e camponeses são também aquelas que mais pagam impostos, proporcionalmente à sua renda.

Flávio: Uma pessoa comum, se chega a conta na casa dela pra pagar energia ela precisa pagar.  Não tem como ela chegar no estado e dizer: olha eu não vou conseguir pagar agora, daqui 3 meses eu pago. Os poderosos conseguem. os custos de uma família empobrecida, de uma família pobre, são pagos com o dinheiro do seu próprio bolso. Os ricos geralmente conseguem dividir esse custo com a população.

Grazi: Para empresas do agronegócio, é muito fácil conseguir um empréstimo bancário. Há também as debêndutres incentivadas, os incentivos fiscais que você já ouviu neste episódio. Os benefícios fiscais que permitem que o agronegócio pague pouco ou nada de impostos são os nossos custos financeiros. Mas nós também arcamos com os custos ambientais e sociais causados por esse setor. Flávio, de que forma a tributação poderia contribuir para reverter esse cenário?

Flávio: Achamos que é fundamental que exista um imposto progressivo sobre as propriedades rurais. Nós achamos que é importante também entender que na medida que determinadas propriedades consigam impedir o desmatamento, inclusive garantir com que os nossos mananciais, que a nossa vegetação se mantenha a gente precisa pensar uma maneira de, quem sabe, desenhar o imposto para poder influenciar bons comportamentos, influenciar produções ambientalmente responsável.

Dani: Povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais são as pessoas que mais cuidam e protegem o Cerrado.

Flávio: Uma agenda de reparação seria, pelo menos, um ponto de partida ter um fundo voltado exclusivamente para a reconstrução do Cerrado. Quais mananciais a gente consegue reconstruir? Quantos hectares a gente consegue recuperar? Quais comunidades a gente consegue construir um arranjo econômico que permita com que essas pessoas vivam lá e ao mesmo tempo  que elas tenham acesso à sua vida material de maneira abundante.

Grazi: E a vida material de maneira abundante foi tirada dessas pessoas por empresas que as expulsam de suas terras e ainda recebem benefícios fiscais. Para que haja reparação é fundamental que indígenas, quilombolas e camponeses participem da tomada de decisões.

Flávio: Os problemas que ocorreram nos últimos 50 anos foram resultado de um desenho de política pública estatal que não nos chamou para a discussão. Então, se não nos chamaram para a discussão e socializaram os problemas, as soluções precisam ser também socializadas. Eu acho que é importante nós, trabalhadores, trabalhadoras comunidades de forma geral, observar a tributação com um ponto estratégico, com um ponto de decisão política, de comportamento.

música

Dani: A exploração de água por mineradoras no Equador, os incentivos fiscais dados pelo governo brasileiro à empresas de saneamento básico para privatizar o setor e o desmatamento e queimadas causadas pelo agronegócio que recebe benefícios fiscais no Cerrado limitam o acesso à água pelas pessoas e destroem o meio ambiente.

Grazi: Esses três exemplos foram relatados por Andrés Arauz, Livi Gerbase e Flávio Batista durante a Conferência da Tax Justice Network, que aconteceu nos dias 13 e 14 de outubro de 2025 na Universidade de Campinas em São Paulo. A conferência “um clima para a mudança: rumo a uma tributação justa para o financiamento climático” contou com o apoio do Transforma, do Instituto de Economia da Unicamp, do Inesc, do Observatório Brasileiro do Sistema Tributário e da Red de Justicia Fiscal de America Latina y Caribe.

Dani: Durante as conclusões da conferência ficou nítido que está na hora de que as pessoas diretamente afetadas pelas múltiplas crises causadas por um sistema que só pensa no lucro tenham o direito de participar da tomada de decisões que pode significar a vida ou a morte das pessoas e do planeta. E reformas tributárias são muito necessárias!

Grazi: Para isso, um dos primeiros passos é conhecer o desenho do atual sistema para entender como podemos mudá-lo. Algumas regras do sistema surpreendem até os funcionários das administrações públicas. É o caso do sistema de abritragem de investimentos corporativos, que mina ações de governos para implementar regras para mitigar os efeitos da crise climática. Esse foi o tema apresentado por Andrés Arauz na Conferência.

Andrés: Muito pouca gente conhece ou pensa que é uma fábula, mas o sistema atual de proteção de investimento gera uma impunidade corporativa institucionalizada no direito público internacional a favor das transnacionais.

Dani: Como exatamente isso acontece?

Andres: Quando um Estado quer se atrever a aumentar a arrecadação de impostos ou estabelecer regulações ambientais   ou exigir transferência de tecnologia, isso é considerado uma violação dos tratados de proteção de investimentos, uma proteção do capital.

Grazi: As empresas transnacionais podem abrir uma queixa caso tenham investido em um país e alegar terem sido prejudicadas pelas leis locais.  Para isso, iniciam uma ação contra esse país no CIAD, que é o Centro Internacional de Arbitragens de Disputas, que faz parte do Banco Mundial.

Andres:  Ou seja, é um banco que tem o próprio judiciário que serve às multinacionais para punir Estados  por medidas regulatórias. Então isso dá impunidade corporativa às transnacionais para que possam simplesmente fugir do cumprimento da normativa que os estados emitem em nome da sua sociedade.

Dani: Os países da América Latina, Espanha e Portugal, foram os que sofreram mais ações no CIAD. Estes países queriam estabelecer medidas tributárias, impostos extraordinários ou regulamentação ambiental para multinacionais dos setores extrativos, como a mineração, ou energético, como petróleo.

Andres: Em particular as mineradoras, quando não gostam de uma decisão ambiental de um governo, de um Ministério do Meio Ambiente, exigem do Estado no Banco Mundial. Esse Estado depois é sancionado, deve pagar multas. Essas multas não estão geralmente contempladas no desenho da política pública, nem nos preços, nem nos orçamentos, mas, além disso, quando chega a sanção, os funcionários, que estão a cargo dos Ministérios, se assustam. E dizem que não vão mais executar a lei, porque tem medo de que venham mais demandas. Então tem um efeito paralisador. É um sistema de disciplina absolutamente neocolonial onde 92% dos casos vêm de transnacionais do norte global que processam países do sul global.

Grazi: Andrés, o que os países podem fazer?

Andres: Tem que sair desse sistema. Os países têm que abandonar o CIAD do Banco Mundial. O tratado se chama Convenção de Washington. Tem que sair dessa convenção. E tem que dar por terminado os chamados tratados bilaterais de proteção de investimentos, que são milhares, quase todos norte-sul.

Dani: E isso já aconteceu na Europa. Diversos países europeus, ao perceberem que não poderiam implementar regulação ambiental por ameaça das transnacionais de combustíveis fósseis decidiram sair dos tratados bilaterais de investimentos.

Andres: Com esses mesmos argumentos, os países do sul global têm a obrigação moral, em defesa de nossos cidadãos, de sair imediatamente desses tratados e resistir, durante 15, 20 anos, enquanto duram as cláusulas de sobrevivência de proteção ao capital transnacional, até que finalmente se recupere a soberania regulatória.

Dani: Você vê isso acontecendo?

Andres: Sim, porque já aconteceu com a Europa, com o tratado da carta de energia; aconteceu com a Indonésia, quando limitaram sua capacidade regulatória; com a Índia, que representa 1 bilhão e meio de pessoas.  Aconteceu com a África do Sul. E em nossa região aconteceu com a Bolívia e o Equador. E muito interessante, o Brasil é o único país em toda a região que não tem nenhum tratado bilateral de investimentos, o que evidentemente lhe põe em uma vantagem de poder regular, de poder atuar com firmeza frente a empresas transnacionais. Esse é o exemplo que deveríamos seguir.

Grazi: Sair desse tipo de acordo é o primeiro passo para que países do Sul Global possam implementar medidas para enfrentar a crise climática

Andres: Se não sairmos do sistema de arbitragem de investimentos, sempre vamos ter essa ameaça latente de que se tomarmos uma decisão vão vir exigências. Mas, uma vez que saíamos desse sistema perverso neocolonial, que dá impunidade corporativa às indústrias extrativas, aí sim vamos ter soberania para poder atuar; não só de não enfrentar sanções econômicas, mas de poder pensar com maior criatividade e liberdade.

Dani: Os custos fiscais reais da transição energética passam pela correção do atual arranjo. Um dos grandes problemas dos países do Sul Global, são as dívidas em moeda estrangeira. Livi Gerbase

Livi: Se você está ocupando 60% do seu orçamento pagando dívida, o que vai sobrar para outras coisas?  A gente precisa saber de onde vão sair os recursos, a gente precisa ter essa discussão, senão a gente vai continuar só falando blá blá blá e não vai resolver a crise energética.

Grazi: Por onde passa a construção da solução da crise que priorize o Sul Global?

Livi:  A gente ainda tem um cenário onde os super ricos, grandes multinacionais não pagam quase nada de imposto. Então aí tem uma possibilidade de onde a gente conseguiria mais dinheiro. Se a gente não resolver a questão da dívida dos países, a gente não vai conseguir resolver a questão climática. Se a gente não conseguir reorientar os fluxos, realmente parar de extrair combustíveis fósseis de uma maneira mais sistemática e estrutural, a gente não vai conseguir sair da crise.

Música fechamento

Grazi: A Sabrina Fernandes, chefe de pesquisa do Instituto Alameda encerrou a Conferência da Tax Justice Network com diversas recomendações  para promover uma economia que sirva às pessoas e ao planeta.

Sabrina Fernandes: Uma das coisas é que nós temos a capacidade de fazer essa transição e fazê-la de forma justa os recursos financeiros estão aí, eles precisam ser arrecadados e eles precisam ser apropriados com propósito, mas isso significa que outra políticas precisam também crescer, ser amparadas. E aí para fazer essa transição de forma mais justa a gente tem que limitar mercados, a gente tem que decrescer alguns setores. Um setor que precisa decrescer muito é o setor militar de guerras. Isso fica muito evidente quando a gente começa a nomear. E se é uma agenda pública, essa agenda deveria ser considerada uma questão de soberania. E aí eu queria convidar vocês para a gente pensar soberania como algo que a gente vai interligar soberania fiscal com soberania alimentar, soberania energética, soberania territorial, e eu diria que soberania ecológica e popular.  Do ponto de vista do clima, isso significa que a gente tem que questionar, questionar essa ideia de que vamos perfurar mais poços de petróleo em nome da soberania energética. É uma soberania que não tem o sentido de longevidade da mesma forma que a gente trabalha quando a gente fala de soberania alimentar, nos movimentos de reforma agrária e agroecologia, e da forma que a gente trabalha soberania territorial, que é sobre pertencimento, que os nossos movimentos de povos tradicionais nos ensinam muito bem.  Então, se a gente tratasse então que o que a gente vai fazer na transição aqui não é sobre o carro, mas sobre mobilidade e modelo de sociedade, a gente abre um leque de ferramentas.

Grazi: O link para a palestra completa da Sabrina Fernandes está na descrição deste episódio em www.edasuaconta.com

Música encerramento

Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A dublagem é de Zema Ribeiro. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David.  Um abraço e até o próximo.

Dani: Lembrando que em www.edasuaconta.com, você encontra a descrição e a transcrição completa, pode ouvir os episódios anteriores, assinar o nosso boletim e ficar sabendo em primeira mão quando um episódio é lançado. www.edasuaconta.com. Se preferir, envie um email para [email protected], com seu nome e número de telefone que a gente te inscreve em nossa lista de distribuição pelo whatsapp. Também estamos no Facebook e no BlueSky. Um abraço a você que nos ouviu até a última palavra e até o próximo!


Outras Fontes

1

Traçando Transições Justas Além do Capital Fóssil, com Sabrina Fernandes. Painel de encerramento da Conferência “Um clima para a mudança: Rumo a uma tributação justa para o financiamento climático”, da Tax Justice Network e organizações parceiras.

2

Relatório “O sequestro do saneamento básico no Brasil” , de CICTAR e Sindae (Bahia)

3

#70 BRICS: descolonizará para enfrentar crise climática?

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#63 Poluidores devem pagar pela crise climática

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#53 Contaminou mais? Paga mais

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