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Florencia Lorenzo
Pesquisadora, Tax Justice Network
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Mario Cuenda García
Pesquisador da Tax Justice Network.
Há uma década, as economias mais poderosas do mundo reunidas no G20 haviam dado uma missão à OCDE: elaborar instrumentos para tributar corporações que operam em vários países e pagam menos imposto do que deveriam. A OCDE elaborou o projeto BEPS com 15 ações e dois pilares, sendo uma dessas ações a troca automática de informações de contas bancárias com o objetivo de conter o abuso praticado por multinacionais e indivíduos super ricos.
Entretanto, estes mecanismos foram insuficientes para conter o abuso fiscal. O mundo deixa de arrecadar estimados 492 bilhões de dólares por ano, quase meio trilhão, de acordo com o Estado Atual da Justiça Fiscal 2024, relatório da Tax Justice Network. Este é o tema do episódio #68 do É da Sua Conta.
Ouça no episódio #68:
- Como são permitidos os abusos fiscais de corporações multinacionais e de indivíduos super ricos
- As falhas dos projetos BEPS 1.0 e 2.0 na tributação de corporações multinacionais
- As limitações da troca automática de informações entre países
- Convenção Tributária da ONU como oportunidade única de mudar esse cenário e implementar medidas internacionais que são do interesse de todos os países
- Medidas unilaterais: países são soberanos para impor impostos sobre a riqueza e lucros excessivos
- Recomendações da Tax Justice Network: o ABC da justiça fiscal
“Os países do Sul global perdem mais em porcentagem das suas receitas totais pro abuso fiscal, e também de suas despesas públicas, por exemplo, com saúde. A dinâmica desses números poderia melhorar muitas coisas se esses bilhões fossem arrecadados.”
~Mario Cuenda García, Tax Justice Network“A OCDE responde institucionalmente a um grupo limitado de países e acaba dando voz, voto ou espaço muito grande de tomada de decisões dos interesses de alguns países que possivelmente não estão empenhados na solução do abuso tributário internacional. ”
~ Florencia Lorenzo, Tax Justice Network
Dublagem: Zema Ribeiro. Vozes da áudioficção: Cecília Figueiredo e Fernando Trevisan
(audioficção) Som de telefone tocando. Música de call center.
Telefonista automática: Olá, você ligou para a facilitadora de abusos fiscais. Para abrir uma conta corporativa no paraíso fiscal, digite 1. Para abrir uma conta individual no paraíso fiscal, digite 2
Milionário: 1
Telefonista automática: Se deseja que sua conta corporativa tenha máximo sigilo, com um trust, digite 3
Milionário: Para o máximo de sigilo, vou digitar 3, assim não será preciso informar que eu sou o beneficiário final nem dono da empresa
Música de Call Center
Telefonista automática: Você chegou ao menu sigilo fiscal. Para aumentar ainda mais sua riqueza e aproveitar as regras de imposto zero do paraíso fiscal, digite 4
Milionário: 4, porque imposto é roubo do meu bolso. Nem me importo com quem vai ficar sem direitos no meu país, o importante é que eu, já super rico, ficarei ainda mais rico hahahahaha
Telefonista automática: Parabéns, você acaba de aproveitar ao máximo as regras de sigilo financeiro e de baixa ou nenhuma tributação do paraíso fiscal, a maneira mais simples e rápida de contribuir para aumentar ainda mais o abuso fiscal global.
Som de fim de chamada telefônica
Música de abertura do É da Sua Conta
Grazi: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas e o planeta. Eu sou a Grazielle David.
Dani: E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal. Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.com e nos mais populares tocadores de áudio digital.
SOBE MÚSICA abertura
Grazi: O mundo perde estimados meio trilhão de dólares por ano para abusos fiscais. A informação é do Estado da Justiça Fiscal 2024, relatório mais recente da Tax Justice Network e que é o tema do episodio #68 do É da sua conta.
SOBE MÚSICA
Dani: A Convenção Tributária da ONU foi aprovada e os trabalhos devem iniciar em fevereiro de 2025.
Grazi: É uma excelente notícia para a justiça fiscal, já que o abuso fiscal precisa ser combatido. Anualmente, o mundo perde 347 bilhões de dólares pro abuso fiscal das corporações. E pelo abuso fiscal normalmente realizado por super ricos que possuem ativos não declarados no exterior, o mundo perde mais 145 bilhões de dólares. No total, 492 bilhões de dólares são perdidos pelo abuso fiscal no mundo.
Dani: Há uma década as economias mais poderosas do mundo haviam dado uma missão à OCDE: elaborar instrumentos para tributar multinacionais, que operam em vários países e pagam menos imposto do que deveriam. Entretanto, os chamados projetos BEPS 1.0 e BEPS 2.0 deste clube dos países ricos falharam. Evidências mostram que estes projetos foram insuficientes para conter o abuso fiscal corporativo.
Grazi: A Convenção Tributária da ONU pode mudar esse cenário se implementar medidas internacionais que são do interesse de todos os países, diferente do que vem fazendo a OCDE, que atende apenas os interesses dos países membros, onde também estão sediadas as multinacionais. Também existem medidas que os países podem adotar de maneira unilateral para acabar com os abusos fiscais e aumentar suas receitas para investir em políticas públicas.
Dani: Essas são algumas das informações estão no relatório “O Estado Atual da Justiça Fiscal ” elaborado pela Tax Justice Network, e lançado em novembro de 2024. Mario Cuenda Garcia é pesquisador da Tax Justice Network e um dos autores do relatório. Mario, o que permite os abusos fiscais das corporações multinacionais?
Mario Cuenda Garcia: O que permite este abuso fiscal é uma arquitetura tributária internacional que permite às multinacionais se envolverem em uma prática chamada transferência de lucros. Isso permite que multinacionais transfiram seus lucros das jurisdições onde desenvolvem a atividade econômica para jurisdições com impostos baixos ou nulos, onde normalmente não possuem atividade econômica substancial. E isso é feito através de métodos chamados preços de transferência.
Grazi: O Preço de transferência é o nome geral que se dá para os métodos de cálculo dos preços dos bens, mercadorias ou serviços importados ou exportados entre empresas consideradas vinculadas, ou multinacionais, que tem sede e filiais espalhadas por vários países. A lógica do preço de transferência deveria ser evitar que as empresas com coligadas ou controladas no exterior burlem o sistema tributário de um país. Acontece que esse sistema está cheio de lacunas que permitem abusos fiscais.
Dani: De acordo com o relatório “Estado da Justiça Fiscal 2024”, Hong Kong é o o maior facilitador de abuso fiscal corporativo. Irlanda em segundo lugar, Canadá em terceiro e Singapura em quarto. Hong Kong e Singapura são ex-colônias britânicas. E o Reino Unido e suas jurisdições satélites são os maiores ofensores globais.
Mario Cuenda Garcia: O que é importante observar é que há muitas jurisdições do Reino Unido, que são seus territórios ultramarinos ou dependências da coroa que também figuram como ofensoras globais, como Gibraltar, Ilhas Cayman e Ilhas Virgens Britânicas.
Grazi: Em novembro de 2024, os países votaram nas Nações Unidas os termos de referência da Convenção Tributária da ONU. A maioria dos países votou a favor e os termos foram aprovados. Alguns países se abstiveram e 9 votaram contra. Os países contrários ao estabelecimento de um espaço democrático para decidir sobre tributação internacional foram: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Japão, Israel, Austrália, Nova Zelândia, Coréia do Sul e Argentina. Muitos desses países são também os que mais facilitam o abuso fiscal corporativo.
Mario Cuenda Garcia: Se pegarmos os países que votaram “não” na votação de Novembro, no total eles causam 117 bilhões de dólares de perdas ao resto dos países apenas por facilitar o abuso fiscal das empresas. E eles ganham apenas cerca de 12 bilhões de dólares, o que significa que por cada 1 dólar que arrecadam, fazem o mundo perder quase 9 dólares.
Dani: Na verdade, isso significa fazer toda a população do mundo perder quase 9 dólares a cada um dólar arrecadado, inclusive prejudicam aquelas pessoas que vivem nos países que facilitam os abusos fiscais.
Grazi: Além do abuso fiscal corporativo, indivíduos super ricos também cometem abuso fiscal. Eles possuem ativos no exterior, mas muitos destes ativos, não são declarados às receitas federais de seus países.
Mario Cuenda Garcia: E isso porque as jurisdições onde estão esses ativos possuem o que chamamos de leis de sigilo, que podem ser encontradas no Índice de Sigilo Financeiro da Tax Justice Network.
Dani: O sigilo fiscal funciona em jurisdições que permitem que indíviduos ricos tenham ativos lá sem que declarem em seus países de origem. Por exemplo, existem locais que permitem a existência de fundos trust.
Grazi: O trust é um instrumento jurídico que permite muitos fluxos financeiros ilícitos, porque facilita que uma empresa de fachada tenha uma conta bancária em um país sem que se saiba quem é a pessoa por trás disso.
Mario Cuenda Garcia: Digamos por exemplo que um país queira saber quem é o dono dessa empresa de fachada. Bem, se a lei não te obrigar a revelar quem está por trás disso, você poderá esconder seu dinheiro. Então essa é uma maneira disso acontecer. Outro exemplo: até recentemente, não havia cooperação entre as jurisdições e as autoridades estrangeiras. Assim, os indivíduos podiam simplesmente esconder os seus bens em distintos países sem qualquer revidação ou repercussão política nos países de origem. Agora existe a troca automática de informações tributárias entre países, mas ela ainda é incompleta.
Dani: Do jeito que vem acontecendo, a troca automática de informações tributárias entre os países está incompleta porque muitos países não participam destas trocas de maneira integral e outros países participam de maneira muito limitada.
Mario Cuenda Garcia: Por exemplo, os Estados Unidos têm uma lei na qual se exige que os países compartilhem informações tributárias com eles, mas eles não compartilham informações tributárias com os outros. Então não é recíproco. Além disso, não há como garantir que todos os bancos estejam cumprindo os compartilhamentos de informações corretamente. E é um sistema relativamente novo onde há possíveis erros.
Grazi: Além destas falhas, alguns países poderosos, como a Suíça, dificultam que os países do sul global recebam as informações tributárias de que necessitam sobre os seus cidadãos, a menos que retribuam como os suíços desejam. Só que muitas vezes eles não têm capacidade para fazer isso. É altamente improvável que a riqueza flua da Suíça para alguns dos países mais pobres do mundo. Portanto, esta pode ser uma forma da Suíça e outros países de alta renda garantirem que as nações mais pobres sejam mal sucedidas ao tentar combater o abuso fiscal e a criminalidade, localizar ativos e outros tipos de riquezas que seus cidadãos possuem fora do país de origem de maneira não declarada
Dani: O quase meio trilhão de doláres que deixa de ser arrecadado devido ao abuso fiscal corporativo faz muita falta aos países: limita a capacidade de garantir direitos, reduzir desigualdades e promover medidas para conter a crise climática.
Mario Cuenda Garcia: Observamos duas ou três tendências. A primeira é que os países do norte global perdem mais em termos absolutos. Mas isso porque eles são os países mais ricos, por isso terão os números mais elevados. No entanto, e essa é a segunda tendência, os países do Sul global perdem mais em porcentagem das suas receitas totais em geral pro abuso fiscal, e também de suas despesas públicas, por exemplo, com saúde. E em terceiro, há muito dinheiro que poderia ser destinado ao financiamento das alterações climáticas. Portanto, a dinâmica desses números poderia mudar muitas coisas se esses bilhões fossem arrecadados.
Grazi: Só para se ter uma ideia, os 348 bilhões de doláres que são desviados apenas pelo abuso fiscal corporativo permitiriam aos estados financiar anualmente o que os países em desenvolvimento afirmam que é necessário para o fundo global de perdas e danos, o que é fundamental para lidar com os impactos da crise climática.
Dani: De um lado, muita gente sofrendo com crise climática, desigualdades sociais, fome… Do outro, quase meio trilhão de dólares perdidos pra abusos fiscais…
Grazi: Uma brecha histórica torna possível romper este ciclo. Mário, o que faz com que a Convenção Tributária da ONU seja uma oportunidade tão única para a justiça fiscal internacional?
Mario Cuenda Garcia: Então esta foi a primeira vez que os países se reuniram e votaram na ONU, onde todos os países têm voz e VOTO, para realmente iniciar uma reforma da arquitetura fiscal internacional.
Dani: Se você é ouvinte do É da Sua Conta, acompanha passo a passo essa mudança rumo à justiça fiscal internacional. Está na hora de romper o ciclo de decisões tomadas por instituições que representam só alguns países, como o bloco do G20, formado apenas pelas economias mais fortes ou a OCDE, que é o clube dos países ricos.
SOBE MÚSICA
Grazi: Os problemas apontados no relatório O Estado da Justiça Fiscal são antigos e seguem se repetindo.
Dani: Em 2013, o G20 deu um mandato político para a OCDE para que ela alinhasse a base tributária com o lugar onde as atividades das empresas de fato acontecem. A nossa colunista, a pesquisadora Florência Lorenzo, da Tax Justice Network, explica qual era o problema que precisava ser solucionado:
Florencia Lorenzo: Uma multinacional que opera em dois países, o país 1 e no país 2. No país 1 ela tem 200 funcionários e duas fábricas No país 2, ela tem apenas uma empresa holding, tem algumas atividades financeiras mas tem só 10 funcionários. Só que quando a gente vai ver as contas dessa empresa multinacional, ela está falando que no país 1, onde ela tem essa grande quantidade de funcionários, as fábricas e grande parte das suas atividades ela está tendo quase nenhum lucro ou até tendo prejuízo. Enquanto nesse país 2, onde tem apenas algumas Estruturas legais algumas pessoas lidando com a parte financeira mas pouquíssima substância ela está reportando milhões e milhões de dólares em lucro.
Grazi: Para acabar com esse tipo de abuso, a OCDE desenvolveu o Plano de Ação BEPS, que é um pacote com 15 ações. O objetivo era resolver o problema da erosão da base tributária e buscar alinhar os lucros com as atividades reais das empresas.
Dani: Entretanto, há poucas evidências de que a quantidade de lucros transferidos por empresas foi reduzida após 2015, quando foi implementado o Plano de Ação BEPS da OCDE. De acordo com dados coletados e analisados pela Tax Justice Network, anualmente, pouco mais de 1 trilhão de dólares é canalizado e registrado artificialmente em paraísos fiscais, o que leva a uma perda de quase 300 bilhões de dólares por ano para todos os países do mundo.
Florencia Lorenzo: Pra início de conversa, isso indica que medidas que a OCDE propôs não foram suficientes para lidar com o problema do desalinhamento da base. A gente usa os dados agregados de relatório país-a-país para ver onde as multinacionais estão reportando que elas têm funcionários, que elas têm ativos imóveis. Então, por exemplo, onde elas têm as fábricas os trabalhadores e onde elas estão reportando os lucros. E a gente vê que tem um grande desalinhamento entre essas duas métricas ainda.
Grazi: As limitações dessa iniciativa foram tão rapidamente sentidas que uma série de países europeus começaram a implementar outras medidas para tentar capturar receitas que eles estavam perdendo de empresas altamente digitalizadas, em particular as chamadas Big Tech, ou seja, as multinacionais de serviços digitais, como Google, Meta, Amazon e Netflix.
Florencia Lorenzo: A gente está falando de final do período de 2018, começo de 2019, gerou um conflito muito intenso entre principalmente a França e Estados Unidos, vários países europeus e Estados Unidos, que os Estados Unidos, naquele momento, Colocou uma série de tarifas e entrou um conflito bastante intenso entre a forma de tributar essas empresas.
Dani: O projeto BEPS 1.0 fracassou. Pra tentar solucionar, a OCDE elaborou o BEPS 2.0 baseado em dois pilares.
Florencia Lorenzo: O pilar 1 busca criar um direito tributário para os países de mercado, alocando uma parte residual dos lucros dessas empresas Para os países onde os consumidores dessas empresas vivem.
Grazi: Entretanto, o relatório O Estado da Justiça Fiscal, da Tax Justice Network, mostra que o pilar 1 sequer foi implementado.
Florencia Lorenzo: O Pilar 1 só entraria em vigor se os Estados Unidos aprovassem, o que é muito improvável. Era muito improvável isso no governo Biden, é ainda mais improvável agora no governo Trump, que vai entrar agora. E se o Estados Unidos não ratificar, esse mecanismo não entra em vigor, porque ele precisa de uma quantidade mínima de países para participar, e como os Estados Unidos tem um peso econômico tão grande em termos da participação de suas multinacionais nesse mecanismo que toda essa iniciativa está pendente da participação dos Estados Unidos.
Dani: O pilar 2 é a proposta de um imposto mínimo global às corporações de 15%. Em teoria, colocaria um limite para a competição ao fundo do poço. A competição ao fundo poço é a dinâmica entre países, de abaixar a alíquota do imposto com a intenção de atrair mais empresas. No final, o resultado é que os países abaixam sucessivamente as alíquotas dos impostos numa dinâmica que prejudica as populações e só beneficia as corporações. O pilar 2 também está ruindo.
Florencia Lorenzo: É um mecanismo que é muito complexo e portanto não está adequado para a realidade de várias administrações tributárias que têm muita dificuldade e, além do mais, ao adotar uma alíquota tão baixa, ele cria esse risco que é um risco real, que a gente vê nos nossos dados, que é que a alíquota termine sendo não um piso que é o que ela se propõe, mas um teto. Os países, ao invés de usar isso como uma forma de proteger a sua soberania tributária, termina diminuindo ainda mais as alíquotas tributárias dos seus países rumo ao 15%.
SOBE MÚSICA
Grazi: Outro mecanismo da OCDE, que na teoria é fundamental, mas que na prática se mostrou pouco eficiente é o Commom Reporting Standard, instrumento multilateral para troca automática de informações sobre contas financeiras.
Florencia Lorenzo: Isso é uma medida que a Tax Justice Network vinha pedindo fazia muitos anos já. Ela força a que países divulguem para as autoridades tributárias do país de residência daqueles sujeitos estrangeiros que têm contas nele, tanto a existência da conta, o valor das contas a renda que entra nessas contas etc. Em termos práticos isso significa que, por exemplo, se eu, Florencia, abrir uma conta na Suíça, as autoridades tributárias da Suíça vão ter que, hoje em dia, informar para a Receita Federal que eu tenho essa conta. E, de forma geral, essa medida é um avanço muito importante para a transferência tributária, né?
Dani: Florencia, quais são as falhas do Commom Reporting Standard?
Florencia Lorenzo: Esse mecanismo foi implementado de forma limitada e ainda insuficiente. E que, por isso, aqueles sujeitos que realmente querem ocultar o seu patrimônio e assim evitar ou evadir impostos no seu país de residência, eles têm algumas brechas ainda, né? Uma vez que as autoridades tributárias têm acesso a essa informação, qual é a proporção dessa informação que elas conseguem de fato analisar e usar para combater fraude e ocultamento de patrimônio? E aí a gente mostra essa ideia de que ainda que algumas evidências apareçam de que alguns países muito desenvolvidos, no caso da Dinamarca, consigam usar bastante bem esses dados, a maior parte dos países ainda tem dificuldades a usar esses dados, o que significa que há muito para melhorar no lado da implementação.
Grazi: Acontece que existe uma grande quantidade de patrimônio oculto que é ativo não financeiro. É o caso de ouro, obras de arte, criptomoedas. Este tipo de ativos oculta o patrimônio de pessoas super ricas e ficam fora desse mecanismo.
Florencia Lorenzo: As estimativas que a gente tem hoje em dia é que a ordem de grandeza do patrimônio não financeiro é três vezes maior do que o patrimônio financeiro. Então, a gente está falando de uma grande quantidade de ativos que ainda não estão dentro do escopo desse mecanismo de intercâmbio de informação.
Dani: O ponto mais problemático da forma como esse mecanismo se implementou é que continua causando desigualdades entre os países do Norte e Sul Global.
Florencia Lorenzo: Devido a demandas muito fortes de reciprocidade e de sigilo, vários países em desenvolvimento, que são aqueles que mais sofrem por fuga de capital, por evasão tributária dos seus indivíduos residentes ricos, vários países, especialmente no caso do continente africano, é drástica a situação, foram barrados de participar desse mecanismo na prática.
Grazi: Qual o maior problema da OCDE?
Florencia Lorenzo: A gente não vai conseguir ter respostas suficientes se o mecanismo de tomada de decisão privilegia esses atores que têm influência completamente desproporcional no processo de tomada de decisões. De forma geral, a OCDE responde institucionalmente a um grupo limitado de países e acaba dando voz e voto ou espaço muito grande de tomada de decisões dos interesses de alguns países que possivelmente não estão alinhados na solução desse problema do abuso tributário internacional.
SOBE MÚSICA
Dani: Para que seja possível arrecadar o que vem sendo desviado pelo abuso fiscal corporativo, o relatório O Estado Atual da Justiça Fiscal traz algumas recomendações fundamentais. Mario Cuenda Garcia, pesquisador da Tax Justice Network:
Mario Cuenda Garcia: Implementar impostos sobre lucros excedentes e riqueza quando necessário. E o que eu acho importante ressaltar é que são medidas unilaterais, certo? Então, os países são soberanos para impor impostos sobre a riqueza e impostos sobre lucros excessivos se considerarem que é preciso fazer. E a única coisa que se necessita pra isso é vontade política e, obviamente, apoio político no parlamento para que essas leis possam ser aprovadas. Então eu diria que as medidas multilaterais e unilaterais andam de mãos dadas.
Grazi: E por falar em medidas internas… Mario, você é da Espanha, onde recentemente foi aprovado um imposto sobre lucros excessivos e uma mudança mais progressiva no imposto à riqueza, ambos com bons resultados.
Mario Cuenda Garcia: Os dados da Tax Justice Network mostram é que se todos os países implementarem o imposto sobre a riqueza aos 0,5% mais ricos da população global, seguindo o modelo dos impostos sobre a riqueza da Espanha, poderíamos arrecadar mais 2 trilhões de dólares no futuro.
Dani: 2 trilhões de dólares extra todos os anos !!! O imposto sobre lucro excessivo ganhou notoriedade durante a pandemia porque foi possível observar como algumas empresas estavam tendo um lucro muito superior à sua média anual, devido a fatores externos.
Grazi: É o caso das farmacêuticas, que aliás é um setor extremamente concentrado nas mãos das chamadas Big Pharma, que fazem com que os governos coloquem os lucros desta indústria acima da vida das pessoas, como você pôde ouvir no episódio #57 do É da Sua Conta.
Dani: Outro exemplo de fator externo é o que ocorreu com a guerra na Ucrânia. Abordamos no episódio #36 do É da Sua Conta. As empresas de energia tiveram lucros muito superiores às suas médias anuais enquanto civis morriam na guerra.
Grazi: O imposto sobre lucro excessivo, recomendado pelo relatório O Estado da Justiça Fiscal, seria justamente sobre essa parte dos lucros acima das médias das corporações, que normalmente ocorrem por fatores externos e em contextos de crises, nos quais poucos ganham às custas de muita gente que sofre e até mesmo perde a vida.
Dani: A terceira recomendação do relatório da Tax Justice Network é sobre a Convenção Tributária na ONU
Mario Cuenda Garcia: Mais de 140 países votaram a favor e apoiaram a convenção tributária da ONU. Os países da União Europeia e alguns outros abstiveram-se. E embora alguns destes países apoiem, estão fazendo uma frente unida na ONU. Alguns países são menos favoráveis, temos que reconhecer. Mas neste momento, o que importa é que agora que a convenção tributária da ONU vai acontecer, todos devem estar na mesa para negociar de boa vontade.
Grazi: Para enfrentar o preço de transferência das multinacionais e a não declaração de ativos no exterior de indivíduos super ricos, a Tax Justice Network traz algumas recomendações fundamentais, entre elas o ABC da justiça tributária.
Dani: A para Automática troca de informações.
Mario Cuenda Garcia: Uma melhor troca automática de informações para garantir que as informações sejam compartilhadas também com os países em desenvolvimento que talvez não tenham a capacidade de compartilhar essas informações.
Grazi: B para Beneficiários efetivos ou beneficiários finais
Mario Cuenda Garcia: Isso é, saber quem é a pessoa por trás de cada ativo. E, para isso, precisamos garantir que os trusts sempre divulguem quem é a pessoa que possui esse trust ou que se beneficiará dele.
Dani: C de Country by country report, traduzindo pro português, relatório país por país
Mario Cuenda Garcia: Ou seja, precisamos saber como funcionam as multinacionais, quanto ganham e quanto de impostos pagam em cada país. E é isso que nos permite, por exemplo, fazer as nossas estimativas sobre o abuso fiscal das empresas. Mas precisamos que esses dados sejam públicos e que sejam desagregados por multinacionais, para que todos saibam o que as multinacionais estão fazendo e para que os pesquisadores também possam analisar o que está acontecendo com esses dados.
Música FECHAMENTO
Grazi: Estamos vivendo um momento crucial na tributação internacional. Foi aprovado o início dos trabalhos da Convenção Tributária da ONU, que deve ficar pronta até dezembro de 2027. É “A” oportunidade para vencer o dramático contexto atual, já que o mundo perde cerca de estimados 492 bilhões de dólares anualmente devido ao abuso fiscal corporativo e de super ricos com ativos não declarados no exterior. Para frear o abuso fiscal é fundamental que a Convenção Tributária da ONU fortaleça o ABC da justiça tributária. Além disso, é preciso aprimorar a tributação e adotar um imposto sobre os lucros excessivos das corporações, e um imposto a riqueza dos super ricos.
música
SOBE MÚSICA ENCERRAMENTO
Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David. A dublagem é de Zema Ribeiro. Agradecimentos também à Cecília Figueiredo e Fernando Trevisan por emprestarem a voz no início do episódio. Um abraço e até o próximo.
Dani: Te agradeço pela companhia em 2024. Te desejo boas festas e justiça fiscal para o mundo! Um abraço e até o próximo ano!
MÚSICA ENCERRAMENTO
A pessoa que de fato se beneficia da receita ou capital associado a possuir algo e/ou no nome de quem a transação está sendo conduzida. Eles costumam ser diferentes dos proprietários legais ou nomeados, que podem ser somente representantes/procuradores que não se beneficiam dos bens, cuja identidade é usada para ocultar o real beneficiário efetivo.
Evasão fiscal é uma atividade ilegal (costuma ser crime) pela qual os contribuintes evadem impostos por meio de fraude. Por outro lado, elisão fiscal significa contornar (ou evitar) o espírito da lei sem de fato violar as leis. Há uma grande área cinza entre os dois polos de elisão e evasão.
Evasão fiscal é uma atividade ilegal (costuma ser crime) pela qual os contribuintes evadem impostos por meio de fraude. Por outro lado, elisão fiscal significa contornar (ou evitar) o espírito da lei sem de fato violar as leis. Há uma grande área cinza entre os dois polos de elisão e evasão.
Fluxos financeiros transnacionais que são ganhos, transferidos ou usados de modo ilícito. Com frequência são descritos como “dinheiro sujo”. Essa designação é dada a fundos que violam a lei em qualquer trecho do seu fluxo.
Um paraíso fiscal ou jurisdição de sigilo é um lugar que deliberadamente fornece uma rota de fuga para pessoas ou entidades que vivem ou operam em outro lugar. Essas jurisdições as blindam contra quaisquer impostos, legislações penais, regulamentações financeiras, transparência ou outras limitações que elas não apreciem. Pessoas comuns cujas vidas são afetadas pela legislação dos paraísos fiscais não são consultadas sobre essas leis porque vivem em outros países: elas não têm voz sobre como são feitas essas leis, solapando, assim, seus direitos democráticos.
HNWIs, pronuncia-se Hen-Wees: pessoas ricas (wealthy individuals, em inglês). Em geral, designam pessoas com bens que podem ser investidos superiores a US$ 1 milhão. Em 2011, a Capgemini e a Merrill Lynch estimaram que havia 10,9 milhões de HNWIs em todo o mudo, com bens financeiros no valor de US$ 42 trilhões.
Um trust é um esquema que separa a propriedade de um ativo. Sob um trust padrão, uma pessoa cede os bens para benefício de outra pessoa (o beneficiário) sob um grupo de regras (instrumento de instituição do trust). Essas regras são executadas por um terceiro, o administrador. Trusts são extensivamente usados em paraísos fiscais, cujas leis fornecem o sigilo que permite que o proprietário original finja que cedeu o bem, enquanto, na realidade, ainda o controla. Isso permite que eles potencialmente fujam da cobrança de impostos sobre sua renda ou ocultem conexões de lavagem de dinheiro ou outras atividades criminosas.
Um trust é um esquema que separa a propriedade de um ativo. Sob um trust padrão, uma pessoa cede os bens para benefício de outra pessoa (o beneficiário) sob um grupo de regras (instrumento de instituição do trust). Essas regras são executadas por um terceiro, o administrador. Trusts são extensivamente usados em paraísos fiscais, cujas leis fornecem o sigilo que permite que o proprietário original finja que cedeu o bem, enquanto, na realidade, ainda o controla. Isso permite que eles potencialmente fujam da cobrança de impostos sobre sua renda ou ocultem conexões de lavagem de dinheiro ou outras atividades criminosas.