#62 Discriminações contra mulheres se combate com justiça fiscal
#61 Passos históricos para convenção tributária equitativa
Convidadxs

As violências, discriminações e desigualdades contras as mulheres são fortes em muitas áreas, inclusive naquelas que parecem neutras, como a política fiscal, o sistema tributário e o gasto público. Entretanto, a justiça fiscal é também um instrumento na luta pela eliminação de todas as discriminações contra as mulheres. Esse é o tema do episódio #62 do É da Sua Conta.

Ouça no episódio #62:

  • O papel da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a mulher (Cedaw) da ONU na garantia do respeito aos direitos de mulheres e meninas.
  • As denúncias e recomendações do movimento brasileiro de mulheres negras ao Comitê Cedaw, com Carolina Almeida (Geledés, Instituto da Mulher Negra).
  • Mulheres narram situações de discriminação e violência que sofrem por serem mulheres.
  • Faltou ‘justiça fiscal’ no relatório apresentado ao Comitê Cedaw pelo governo brasileiro, mas também nas recomendações ao Brasil do Comitê Cedaw. Carmela Zigoni (Inesc) comenta a importância da tributação na garantia de orçamento para a execução de políticas públicas.
  • As recomendações do movimento de justiça fiscal para o Comitê Cedaw e a importância da transparência, progressividade e 5 R’s da tributação para o respeito à vida das mulheres, com Carolina Finetti (Tax Justice Network).

“Não adianta identificar as problemáticas dessas mulheres ou garantir o lado emocional se não são dadas as condições para ela sair do ciclo da violência.  É preciso igualdade de oportunidades, inclusive de emprego.”
~Tânia Chantel, Casa de Maria (Itacoatiara-AM)

 “Dos dez temas que apresentamos, seis constaram das recomendações do Comitê Cedaw ao Brasil. Foi um grande avanço e até uma grande alegria ver a recepção às propostas e ao entendimento das desigualdades pelas quais passamos.
~Carolina Almeida, Geledés, Instituto da Mulher Negra

“Se o governo permitir um incentivo fiscal, é preciso que  isso retorne de maneira positiva para os territórios, principalmente para as mulheres indígenas, quilombolas, ribeirinhas. E que sejam mais tributadas as empresas que têm atividades econômicas que são nocivas à saúde e ao meio ambiente.”
~ Carmela Zigoni, Inesc

“É preciso redistribuir a carga tributária dos impostos sobre o consumo e garantir a progressividade dos impostos com relação à renda, além de implementar impostos que estejam voltados à reparação histórica.”
~ Carolina Finetti, Tax Justice Network

Mulheres que narram situações de discriminação: Alessandra (Indígena Munduruku do Amazonas) Andreia (Quilombola do Rio Grande do Norte), Laura (migrante boliviana vivendo em São Paulo) e Tânia (Ribeirinha do Amazonas).

Áudio especial: trecho de entrevista do presidente Lula à CBN

Transcrição

Tania: Não adianta você garantir o lado emocional para essa mulher, ou identificar as problemáticas dessas mulheres se no desenrolar das coisas você não dá condição para essa mulher sair do ciclo da violência você precisa do psicossocial, do jurídico, mas você precisa ter igualdade de oportunidades, inclusive na questão de emprego. Todas as outras condições necessária para que a gente tenha uma vida digna, né?

Grazielle David: Essa é a Tânia Chantel, que faz parte de um coletivo que criou um espaço que acolhe mulheres em situação de violência doméstica e familiar no município de Itacoatiara, no estado do Amazonas. Ela fala sobre as diferentes esferas de apoio que uma mulher precisa para romper o ciclo da violência. Isso porque as violências, discriminações e desigualdades contras as mulheres são fortes em muitas áreas, inclusive naquelas que parecem neutras, como a política fiscal, o sistema tributário e o gasto público.

Música de Abertura É da Sua Conta

Grazielle: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas. Eu sou a Grazielle David.

Daniela Stefano: E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal. Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.come nos mais populares tocadores de áudio digital.

Grazi: A justiça fiscal como instrumento na luta pela eliminação de todas as discriminações contra as mulheres é o tema do episódio #62 do É da Sua Conta.

Dani: É difícil acreditar que em pleno 2024 o direitos das mulheres ainda precisem ser conquistados por exigência da ONU.

Isso acontece atraveś da Cedaw, a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a mulher. Ela foi adotada em 1979 pela Assembleia das Nações Unidas e atualmente 186 países fazem parte da Convenção.

A Cedaw é o principal instrumento internacional na luta pela igualdade de gênero e para acabar com a discriminação contra a mulher perpetrada por Estados, indivíduos, empresas ou organizações.

Grazi: Em 1999 foi adotado na Cedaw um protocolo opcional, ratificado por alguns países.

Nos países que adotaram este protocolo, as mulheres que tiveram seus direitos violados, após esgotarem todas as possibilidades de recurso às instâncias nacionais, podem recorrer ao Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

O Comitê é composto por 23 peritas que são indicadas pelos seus governos e eleitas pelos Estados membros.

Dani: O Comitê CEDAW tem também a responsabilidade de garantir a aplicação da Convenção nos países que assinaram esse protocolo.

De acordo com o artigo 18 da Convenção da Cedaw, os Estados que ratificaram o protocolo devem apresentar relatórios periódicos ao Comitê sobre quais medidas estão adotando para acabar com a discriminação contra as mulheres.

Grazi: O Brasil só ratificou a Convenção da Mulher em 1984, ano da abertura democrática após os tempos sombrios da ditadura militar.

O Protocolo Adicional à Convenção foi assinado em 2002, quando o Brasil apresentou o primeiro relatório.

E em maio de 2024, o governo brasileiro apresentou o quinto relatório periódico e foi sabatinado pelas peritas da Cedaw em Genebra, na Suíça. Em seguida, as peritas elaboraram uma série de recomendações para que o Brasil avance na implementação dos direitos de mulheres e meninas.

Dani: Além do relatório que um país submete ao Comitê Cedaw, organizações que defendem os direitos das mulheres também podem apresentar relatórios para as peritas avaliarem.

Esses documentos são conhecido como “relatório sombra” por trazerem principalmente as denúncias do não cumprimento pelo país dos direitos de mulheres e meninas.

Grazi: Um dos relatórios sombra apresentado à Cedaw foi Geledés, Instituto da Mulher Negra, em parceria com as organizações Coalizão Negra por Direitos, Criola e Coletivo Danêji.

Carolina Almeida é assessora internacional de Géledes, esteve em Genebra e participou tanto dos espaços oficiais de reuniões da ONU quanto dos eventos paralelos, realizados pelas organizações que defendem os direitos das mulheres e meninas.

Carolina Almeida: embora nós tenhamos ido lá para denunciar, a nossa intenção é que o Estado brasileiro entenda CEDAW como um espaço que vai gerar recomendações que devem ser absorvidas e implementadas em políticas públicas de forma preventiva; Queremos, sim, que elas sirvam de prevenção para a violência que as mulheres e meninas negras sofrem no Brasil.

Dani: Géledes é um instituto de mulheres negras contra o racismo e o sexismo e tem como principal objetivo erradicar as diversas discriminações. Quais foram as denúncias que levaram?

Carolina Almeida: As mulheres negras não estão representadas na política, as mulheres negras são a maioria em trabalhos precarizados, recebem os menores salários, não temos acesso à previdência, somos as que sofremos mais com as mudanças climáticas, é uma lista grande de desigualdades e discriminações e falta de acesso e invisibilização.

Apesar de todas essas denúncias, nossa proposta lá foi apresentar às peritas uma possibilidade de superação de todas as desigualdades e discriminações pelas quais as mulheres e meninas negras passam. Porque nós temos muito a agregar para essa cúpula política que está buscando por respostas, as mulheres negras também têm respostas para isso. Mas nós precisamos ser emancipadas.

Grazi: Emancipadas de que forma?

Carolina Almeida: Sendo empoderadas economicamente. O empoderamento econômico ou a vivência econômica atravessa toda a existência das pessoas. O G20 demonstra isso. Vai desde mudança climática até excesso de educação, até representatividade política. Então, o que Géledes tem buscado é falar da importância do empoderamento econômico para a superação de todas essas desigualdades que eu listei e é só o começo, nem falei todas. Só pra ilustrar.

Dani: Carolina, como você avalia o impacto dessa incidência em específico na CEDAW?

Carolina Almeida: Olha, o impacto do meu ponto de vista pessoal e do ponto de vista do Instituto também, é que foi extremamente positivo. Dos dez temas que nós apresentamos, seis constaram nas concluding remarks. Então, para nós, realmente, foi um grande avanço e uma grande até alegria em ver como está sendo mais… mais receptiva as propostas e o entendimento das desigualdades pelas quais passamos.

Grazi: Quais propostas de Geledés foram incorporadas no relatório de recomendações da CEDAW?

Carolina Almeida: O primeiro foi empoderamento econômico. O segundo foi o acesso à justiça. As mulheres como um todo, principalmente as mulheres negras, não têm tido esse apoio, que é um direito. A importância de se garantir financiamento com baixas taxas ou zero taxa de juros para que mulheres negras possam ter seus próprios negócios, para que elas possam empreender. E aí, Geledés está usando esse termo empreendedorismo sustentável em contraposição ao empreendedorismo de sobrevivência, a qual muitas pessoas afrodescendentes e muitas mulheres afrodescendentes são expostas.

Andreia: Eu sou Andréia, sou do Quilombo de Grossos, Bom Jesus do Rio Grande do Norte. Na minha comunidade hoje nós temos 170 famílias mais ou menos, A grande maioria são mulheres que tomam de conta da família, são mães solteiras, então elas trabalham na agricultura, onde a gente tem a agricultura de subsistência e também uma grande parte delas trabalha em casa de famílias, então Então é preciso desse deslocamento da comunidade para a cidade para poder ganhar o sustento e conseguir sustentar as famílias.

Dani: Para que as mulheres possam sair da pobreza, é preciso que elas tenham trabalho e renda que garantam vida digna. E que tenhamos também apoio nas tarefas de cuidados de crianças e idosos: e isso só se consegue com a implementação de políticas públicas.

Grazi: A tributação é uma das maneiras mais importantes de se garantir receita para políticas públicas de um país.

Entretanto, a justiça tributária não foi mencionada no relatório oficial do governo brasileiro apresentado às peritas da Cedaw.

Carmela Zigoni: Foi muito negativo que o Brasil não tenha incluído isso no relatório que apresentou a CEDAW e também, embora o tema tenha sido discutido lá durante a reunião, ao final o relatório da própria CEDAW não contemplou esse tema.

Dani: Carmela Zigoni, assessora política do Inesc, Instituto de Estudos Socioeconômicos.

Carmela Zigoni: Isso demonstra que a gente precisa conversar mais com as mulheres sobre isso, para que seja mais compreendido de que a gente tem que brigar pelas políticas públicas que atendem as mulheres de saúde, de assistência, de educação, mas também a gente precisa discutir como que arrecada recursos para a execução dessas políticas de uma forma mais justa.

Grazi: O Inesc, a Tax Justice Network, a Latindadd e a Rede de Justiça Fiscal da América Latina também entregaram um relatório-sombra ao Comitê Cedaw. As organizações que atuam por justiça fiscal apontaram no relatório que o sistema tributário brasileiro permite e amplia desigualdades de gênero e raça, ou seja, colabora para a discriminação de mulheres, em especial as racializadas.

Carmela Zigoni: A justiça fiscal é um tema muito importante para as mulheres brasileiras, porque o nosso sistema tributário é regressivo, ou seja, as mulheres pagam muitos impostos quando elas consomem, quando elas compram um pão, quando elas compram um absorvente, elas estão pagando impostos embutidos ali. Então esse tipo de pagamento, muitas vezes que a pessoa não percebe que ela está pagando tributos, acaba onerando, ou seja, pegando uma parte daquela renda da mulher, muito grande, principalmente das mulheres mais pobres. E a gente sabe que no Brasil a pobreza tem cor, então muitas mulheres negras acabam pagando proporcionalmente mais impostos.

Música heróica

Dani: Impostos são nossos herois. O super poder dos impostos é nos ajudar a reduzir as injustiças, as discriminações e as desigualdades na sociedade.

Por isso, seria fundamental que tanto o relatório do governo brasileiro quanto as recomendações do comitê CEDAW incorporassem o tema de justiça tributária nesse relatório e nos futuros.

Grazi: Após receber os diversos relatórios e ouvir as representantes, do governo brasileiro e de organizações que lutam por direitos das mulheres, o Comitê Cedaw recomendou o fortalecimento do acesso das mulheres à justiça através de assessoria jurídica gratuita, como Geledés propôs.

Para diminuir a discriminação de gênero, o Comitê Cedaw recomendou a educação sobre igualdade de gênero em todos os níveis de ensino, além de campanhas de conscientização.

O Comitê expressou também a urgência da implementação dessas e de outras políticas públicas principalmente para mulheres rurais, em situação de pobreza, indígenas, quilombolas, afrodescentes, migrantes, lésbicas, trans e intersexo.

Laura: Meu nome é Laura, sou boliviana, cheguei aqui no brasil no começo de 2011 com minhas 3 filhas, uma de 10, a do meio de 5 e a caçula de 3 anos. Eu vim aqui por motivos de trabalho. Então a gente começou a trabalhar pra uma moça em costura, eu e minha irmã e ai foi que aprendi a costurar, a mexer com as máquinas foi uma situação tão difíci ali na Bolívia de ter todo o tempo pra dar a nossas filhas, pra cobrir suas necessidades, atender e demais e ali tem uma casa própria, disposição de muitas coisas e chegar aqui, trabalhar quase 16 horas por dia, minhas filhas ficavam fechadas no quarto depois de chegar na escola, um câmbio muito radical.

Dani: Como justiceiras fiscais, mas também como cidadãs e mães, entendemos que nenhuma pessoa deveria ser tão explorada na jornada de trabalho como a Laura e nenhuma criança deveria ser privada tanto tempo do cuidado de sua mãe ou outros cuidadores, como as filhas dela foram.

A ausência de um sistema público de cuidados, adequadamente financiado por impostos cobrados de maneira justa, permite que no Brasil crianças fiquem trancadas em quartos, sem espaço para exercer o direito de ser criança, de brincar, de ser livre e bem cuidada.

É inaceitável que uma sociedade permita exploração análoga ao trabalho escravo e que crianças sejam privadas de cuidados de quem são responsáveis por elas.

Grazi: É preciso aumentar os recursos disponíveis para políticas públicas para quase todas as recomendações do Comitê Cedaw ao Brasil.

E o que o relatório sombra apresentado pelas organizações que lutam por justiça fiscal mostra é que o novo marco fiscal do governo brasileiro prejudica a implementação das políticas públicas recomendadas pela CEDAW, nos conta Carmela Zigoni do Inesc.

Carmela Zigoni: Dos anos 2000 para cá, já conseguimos que os governos se sensibilizassem um pouco mais para fazer políticas públicas específicas para as mulheres e para a população negra e quilombola. Já em políticas públicas como a política econômica, que é onde se discute a questão dos tributos, dos impostos, as questões fiscais, o gênero e a raça, as desigualdades entre pessoas brancas e negras e entre homens e mulheres, ainda não é contemplada da forma mais adequada.

O exemplo é a questão do tema não ser um tema central ainda nos espaços que discutem as formas de discriminação e violência contra as mulheres. Porém, se você não incorpora isso na pauta econômica, na pauta da gestão pública de uma forma mais forte, você está reproduzindo privilégios. E no Brasil, os privilegiados são principalmente os homens brancos, das camadas mais ricas da sociedade.

Os impostos diretos, que são o pagamento do imposto de renda e outros impostos que a gente paga sabendo que está pagando, que não está embutido no consumo, não dão conta de suprir essa desigualdade. Isso na parte dos tributos.

Alessandra Korap: Meu nome é Alessandra Korap, sou do povo Munduruku. Os Caciques sempre estavam falando sobre a questão do garimpo, falava da questão principalmente social, as drogas, armas e da prostituição, muito lixo, água suja Impactando a vida das mulheres e das crianças. E isso a gente começou a denunciar cada vez mais. Como é que nós vamos parar com isso se não é nós que estamos explorando? Se não é nós que estamos desmatando? Se não é nós que estamos descarregando mercúrio?

Dani: Além dos impactos que a Alessandra acabou de citar, as mulheres indígenas, quilombolas, ribeirinhas e outras que vivem em territórios tradicionais acabam sendo afetadas também pelos incentivos fiscais dados pelos governos para as grandes corporações. Isso acontece quando se abre mão do imposto que uma empresa deveria pagar.

Carmela Zigoni: E hoje no Brasil existem muitos incentivos fiscais sem transparência. Então isso é uma outra parte que a gente tem que incidir para que quando o governo incentive essa atividade econômica, isso retorne de uma maneira positiva para os territórios, principalmente para as mulheres.

Entrevista de Lula à CBN que questiona os bilhões de desoneração fiscal às grandes corporações, mas que pobres não são beneficiados.

Dani: Bom que o presidente Lula está considerando reavaliar as isenções fiscais

Carmela Zigoni: A gente defende que na reforma tributária, por exemplo, sejam tributados mais as empresas que tem atividades econômicas que são nocivas, como essa que eu citei, da mineração, mas outras também, como produtoras de alimentos ultraprocessados, que fazem mal à saúde, enfim, para taxar mais quem tem mais e poder o recurso ir para quem tem menos por meio de políticas públicas.

Grazi: Para implementar políticas públicas em especial para mulheres que vivem em territórios distantes dos grandes centros urbanos, o estado precisa estar organizado.

O relatório das organizações que lutam por justiça fiscal apresentado à Cedaw também aponta que não bastou criar os Ministérios da Mulher e da Igualdade Racial no governo Lula III para combater a violência doméstica e para a promoção de igualdade racial e combate ao racismo.

Carmela Zigoni: Depois desses anos todos de cortes orçamentários, o recurso que está sendo alocado agora, que já é bem maior do que nos últimos cinco anos, ele tem que dar conta do passivo gerado pelos cortes e mais de realização de direitos. Para frente, então ele ainda é um recurso muito insuficiente, só para dar um exemplo, a política de igualdade racial ela foi extinta no último governo, ela não estava presente no plano plurianual, que é o PPA, que organiza as políticas públicas para quatro anos, nós consideramos que isso é um flagrante caso de racismo institucional, que é você excluir do planejamento de políticas públicas a população negra e quilombola, então a foi um recurso que foi cortado em quatro anos a zero, né?

Dani: Após a apresentação do relatório do governo brasileiro em Genebra, o comitê Cedaw recomendou inclusive mais investimentos nestes dois ministérios, que atualmente funcionam com recursos limitados.

Carmela Zigoni: O governo anterior enviou para o Congresso, para o orçamento de 2023, o pior orçamento em 20 anos para as mulheres, de apenas 13 milhões de reais. Então foi assim que a nova ministra chegou, com orçamento minúsculo. Para 2024 tem 340 milhões então só para dar uma ideia aqui da diferença né mas como eu disse ainda é insuficiente no sentido de ter que dar conta do que ficou para trás, sem fazer e dos problemas que as mulheres enfrentam.

Dani: E aí a gente reforça a importância da tributação na arrecadação de receitas: o que pode ser feito através dos impostos para garantir recursos suficientes para a efetivação dos direitos das mulheres?

Carmela Zigoni: O Brasil é um país que taxa muito pouco herança e patrimônio, o que é o retrato da nossa herança colonialista também, que no pós-abolição não dividiu terras, não dividiu propriedade, não incluiu a população negra nas esferas de trabalho decente.

Então, esse histórico, essa conta chega nos dias atuais. É importante que a gente tenha um sistema tributário mais equitativo, que combate desigualdades que é o fato de o orçamento hoje ter uma enorme fatia que é decidida pelo Congresso Nacional então não é só o governo; o executivo que foi eleito que decide sobre o orçamento, então é necessário que os parlamentares se comprometam também com a agenda das mulheres e realizem emendas para as políticas de mulheres ou que vão impactá-las mais positivamente.

Música Respeita, de Ana Cañas

Grazi: O relatório sombra apresentado pelas organizações que lutam por justiça fiscal foi elaborado de maneira coletiva, junto a outras 20 organizações feministas.

Neste diálogo, as organizações que construíram o documento chegaram a 16 recomendações divididas em três temas centrais para ter uma questão tributária justa. O primeiro eixo é transparência nas operações financeiras, como explica Carolina Finette, pesquisadora da Tax Justice Network.

Carolina Finette: Com relação à transparência a gente vai ter, por exemplo, que acabar ou eliminar gradualmente o uso das ações do portador de todas as empresas que estão situadas no Brasil. As ações ao portador, elas vão conferir propriedade a quem vai possuí-las fisicamente. Então,por exemplo, ela vai ser muito usada para lavagem de dinheiro, para dificultar que as autoridades saibam quem de fato são os acionistas.

As recomendações também vão tocar, por exemplo, em aprimorar a definição de beneficiário efetivo e adotar aí limiares mais baixos. Então, isso daí vai garantir que a gente possa saber quem de fato se beneficia de uma empresa, direto ou indiretamente, que elas sejam, essas pessoas sejam identificadas pelas autoridades.

E também, por exemplo, falar sobre aprimorar a questão do registro dos veículos jurídicos estrangeiros, né, e exigir que todo trust estrangeiro, ele tenha um trust nacional, ele se registre no CNPJ.

Dani: O trust é uma estrutura de planejamento patrimonial e sucessório na qual os bens são administrados por um terceiro em favor de um ou mais beneficiários.

Em outras palavras, o proprietário contrata um serviço de gestão dos seus bens até que os familiares e/ou beneficiários os recebam no futuro.

Como os bens passam a estar no nome do gestor do trust, perde-se a informação de quem são os verdadeiros beneficiários finais, o que permite falta de transparência e abuso fiscal, por exemplo.

Em 2023 foi aprovada a Lei 14794 que começou a regular os trusts, pelo menos daqueles com registro no Brasil. A lei também definiu a tributação dos rendimentos dos trusts em 15%.

Grazi: E com relação à transparência de multinacionais, o que diz o relatório entregue ao comitê da Cedaw?

Carolina Finette: Também vai falar sobre a exigência de multinacionais para publicar relatórios país por país. Fazer com que essas empresas, elas informem as suas atividades em cada país onde elas estão operando, então incluir os dados relativos, onde elas têm empregados, quais foram os lucros obtidos em cada país, os impostos pagos em cada país, e isso daí é bom para a gente poder identificar as estratégias de elisão fiscal.

Dani: Uma das recomendações de transparência tem com objetivo dar maior visibilidade às desigualdades de gênero e raça.

Carolina Finette: Coletar e publicar as estatísticas fiscais que sejam desagregadas por gênero e raça, porque a gente pode comparar, de fato, e entender quais são os impactos dessas reformas para as mulheres, mas também para as mulheres negras, que a gente vai ver no relatório que são as mais afetadas negativamente pelas reformas fiscais.

Grazi: De que forma a tributação internacional aparece nas recomendações para contribuir com a eliminação da discriminação das mulheres no Brasil?

Carolina Finette: Basicamente, continuar uma participação ativa e engajada nos esforços regionais, então, por exemplo, com a PT-LAC, para chegar a um acordo regional sobre padrões fiscais de formas que sejam mais inclusivos, sustentáveis e também equitativos e democráticos, e que estejam aí com enfoque nos direitos humanos, com enfoque nas mulheres, questões de gênero e raça, e que também busquem combater o aumento da pobreza e da desigualdade.

Dani: A PTLAC é a Plataforma Tributaria da América Latina e o Caribe, constituída em julho de 2023, em Cartagena, na Colombia.

Os episódios #49 e #52 do É da Sua Conta explicam como ela surgiu e o potencial de, juntos, os países da América Latina e Caribe diminuírem as desigualdades na região mais desigual do mundo.

Em resumo, a PTLAC tem como objetivo promover a cooperação tributária na região, fortalecer as reformas tributárias nacionais e chegar a posições mais uniformes nos espaços globais de tributação, como é o caso da Covenção Tributária que está sendo elaborada na ONU e que também já foi tema de diversos episódios do É da Sua Conta.

Grazi: E quais foram as recomendações das organizações de justiça fiscal apresentadas para o Comitê Cedaw com relação à tributação nacional?

Carolina Finette: Reconhecer o impacto desigual das medidas de austeridade sobre as mulheres e outras populações vulneráveis. E, a partir disso, adotar estratégias que Que sejam sensíveis ao gênero, então, dentro da própria política tributária. E ele tem que ter um enfoque em, por exemplo, a correção e a prevenção da exclusão das mulheres no mercado de trabalho, garantir um nível adequado de proteção social. E também expandir os serviços, as políticas públicas, né? As mulheres são as maiores usuárias e que se beneficiam mais. Então, a partir dos cortes, elas são as mais afetadas.

Dani: E aproveitar a oportunidade de que o Brasil passa agora por uma reforma tributária…

Carolina Finette: Também sobre manter e ampliar as mudanças nessa reforma tributária, né? Que foi aprovada aí a primeira fase. Então, que impactam justamente as mulheres. Então, por exemplo, manter a ampliação dos subsídios para produtos de cuidado e de saúde, que são, principalmente, consumidos pelas mulheres.Redistribuir também a carga tributária dos impostos sobre o consumo. Para os impostos sobre as grandes riquezas. E também garantir a progressividade dos impostos com relação à renda. E implementar impostos que estejam voltados à reparação histórica. Com relação às mulheres, mas também com relação às mulheres negras. São essas as principais.

Grazi: Você falou em reparação e esse é o quinto R para a tributação justa, de acordo com a Tax Justice Network. Os outros 4 Rs são Receita, Redistribuição, Reprecificação e Representatividade. De que forma o relatório para o Comitê CEDAW contempla os 5 Rs da justiça tributária?

Carolina Finette: Progressividade, ela vai aumentar a quantidade de receita que a gente tem disponível para financiar as políticas públicas, especialmente aquelas que são voltadas para as mulheres. Então aí, por exemplo. Diminuindo a quantidade de trabalho de cuidados não remunerado Por exemplo, a partir da disponibilidade de creches, da disponibilidade de insumos de saúde gratuitamente distribuídos para as mulheres. Também vai trabalhar a questão da redistribuição da carga tributária. Então, já é o nosso outro R da questão dos cinco Rs. Essa progressividade vai diminuir a carga tribuária das mulheres negras em situação de baixa renda. Progressivamente pagando menos impostos. Para que essas pessoas ricas paguem mais. E a partir disso também. Vai tocar na questão de reparação.

Grazi: A progressividade em si, ou seja, que quem tem mais contribua com mais e quem tem menos contribua com menos, é uma forma de promover reparação, e assim corrigir de alguma forma os efeitos da colonização, escravização de pessoas e injustiças ambientais.

Dani: E como aplicar o R de representação no Brasil?

Carolina Finette: Construir um sistema tributária que tenha um sentido mais democrático, de pertencimento, de um contrato social entre as pessoas e o governo. Que aquilo que elas pagam. De fato é retribuído para elas através dos impostos. Então talvez por esse aspecto também.

Grazi: O R da Representação também deve ser sobre aprimorar o diálogo e a interação entre as pessoas que vivem em um país com seu governo.

Como elas estão contribuindo com impostos têm o direito de exigir que os governos prestem contas do modo como estão arrecadando e executando os recursos.

Dani: Mas pra isso acontecer é preciso primeiro fazer com que em espaços, como o Comitê Cedaw ou os Ministérios da Mulher e da Igualdade Racial também compreendam que é essencial incluir a justiça fiscal em suas pautas.

E para popularizar justiça fiscal, é preciso que haja campanhas de informações sobre justiça fiscal, como diz a Carmela Zigoni, do Inesc.

Carmela Zigoni: Esse tecnicismo serve muitas vezes para excluir a sociedade dos debates. Então, o importante é que a gente traduza isso em uma linguagem mais acessível para que mais mulheres compreendam que elas têm direito a essa fatia do orçamento nas suas vidas porque elas contribuem com o bolo do orçamento do estado seja diretamente seja indiretamente.

Fechamento

Grazi: A CEDAW – Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres na ONU é essencial como instrumento global para o fim das violências, discriminações e desigualdades contras as mulheres.

Entretanto, cada país deve cumprir sua obrigação de acabar com as discriminações contra as mulheres, nas diversas políticas públicas, no judiciário, nas leis, na justiça e também na política fiscal, e no sistema tributário.

É preciso que os mais ricos e as grandes corporações contribuam com mais, de modo a garantir recursos adequados para políticas de enfrentamento das violências, discriminações e desigualdades contras as mulheres e meninas, e também para seu empoderamento econômico.

Sociedades mais igualitárias têm as pessoas mais felizes. Então, reduzir as discriminações contra as mulheres será bom para todas as pessoas.

Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David. Um abraço e até o próximo.

Dani: Te desejo uma excelente continuação de manhã, tarde ou noite… Abraço fraterno e até o próximo!


Outras Fontes

1

Organizações denunciam impacto da desigualdade fiscal sobre as mulheres

2

Justiça Fiscal para mulheres brasileiras: apresentação ao Comitê para a Cedaw

3

Proposta de Geledés para empoderamento da mulher negra é retomada na ONU

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Primeiro justiça fiscal, depois flores!

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