#55 Criminosos na Amazônia lavam dinheiro nos EUA
#54 Como impostos podem promover reparação
#56 Escola de heróis tributários
Convidadxs

Desmatamentos, exploração ilegal de minérios e de madeira: parte do dinheiro sujo dos crimes ambientais na Amazônia acabam em paraísos fiscais nos Estados Unidos. Quem são os responsáveis? Como parar com isso? Esse é o tema do episódio #55 do É da sua conta.

  • Alessandra Korap fala sobre os impactos do garimpo e da mineração nos territórios dos mundurukus. Povos indígenas e comunidades tradicionais são as afetadas diretamente pelos crimes ambientais na Amazônia.
  • A conexão entre crimes ambientais e crime organizado na região amazônica é explicada pelo professor e pesquisador Aiala Colares Couto (UEPA e Instituto Mãe Crioula).
  • Pelo menos 281 bilhões de doláres de rendimentos anuais para criminosos. Relatório da FACT Coalition aponta os Estados Unidos como um dos paraísos fiscais que mais lava dinheiro advindo dos crimes ambientais. Vivian Calderoni, do Instituto Igarapé, comenta os achados do relatório.
  • Fluxos Financeiros Ilícitos: como se definem e como combatê-los? Florência Lorenzo, pesquisadora da Tax Justice Network responde.

“A gente não sabe quem é pior: se são os garimpeiros ou as mineradoras”.
Alessandra Korap, liderança munduruku

“Me perguntaram uma vez sobre lavar dinheiro (das drogas) com ouro. Mas será que é lavagem? Porque se o ouro já é ilegal e contrabandeado, uma atividade ilegal não lava a outra atividade ilegal.”
Aiala Colares Couto, professor e pesquisador da Universidade Estadual do Pará

“Fraudes, corrupção e lavagem de dinheiro: três crimes essenciais para dar a aparência de legalidade. São fraudados documentos sobre esses bens florestais, ocultando as origens ilícitas e possibilitando que sejam comercializados, por exemplo.
Vivian Calderoni, Instituto Igarapé

“Precisamos saber quem são as pessoas que estão se beneficiando dessas transações e, portanto, desses crimes ambientais. Para isso, é central que todos os países garantam transparência de empresas ou outras entidades legais sobre quem são os proprietários, proprietários legais, mas também beneficiários finais”
Florencia Lorenzo, Tax Justice Network

É da sua conta é o podcast mensal em português da Tax Justice Network. Coordenação: Naomi Fowler. Dublagens: Cecília Figueiredo e Zema Ribeiro. Produção e apresentação: Daniela Stefano e Grazielle David. Download gratuito. Reprodução livre para rádios.

Transcrição

Abertura + Sobe BG

Grazielle David: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas. Eu sou a Grazielle David.

Daniela Stefano: E eu a Daniela Stefano.

O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal.

Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.com e nos mais populares tocadores de áudio digital.

Grazi: Desmatamentos, exploração de minérios e de madeira ilegal tem tudo a ver com os fluxos financeiros ilícitos. Quem é o responsável?

Parte do dinheiro sujo dos crimes ambientais na Amazônia acabam em paraísos fiscais nos Estados Unidos. Como parar com isso? Esse é o tema do episódio #55 do É da sua conta.

SOBE BG

Alessandra: Meu nome é Alessandra Korap, sou do povo Munduruku. Eu sou coordenadora da Associação Indígena Pareri, que trabalha com três aldeias do Médio Tapajós.A gente nunca imaginava que o nosso rio, nossos peixes, que é a alimentação da gente, estivesse contaminada.

Dani: A Alessandra Korap falou comigo por zoom, diretamente da aldeia dela.

O garimpo ilegal de ouro afeta os territórios Munduruku no Pará desde os anos 1980 e uma das mais graves consequências é a contaminação por mercúrio.

O mercúrio é usado pra separar o ouro de impurezas pelos garimpeiros e é despejado indiscriminadamente nos rios e solos.

Alessandra: Falar só do mercúrio é falar de todo o ecossistema que está envolvendo a nossa vida. O impacto do garimpo no meio ambiente está envolvido em tudo. Porque quando desmata também o mercúrio, ele vai para o rio, vai para os peixes, vai para o nosso corpo.

Grazi: Um dos alimentos dos munduruku é o peixe e como o peixe está contaminados por mercúrio, as pessoas adoecem.

A primeira vez que ouviram falar da possível contaminação foi em 2016. Mas foram necessários mais três anos de burocracias para que as amostras de sangue fossem coletadas.

E quando finalmente tiveram acesso ao resultado: 60% da população de três aldeias estava contaminada.

Alessandra: Aí as mulheres olhavam assim e nós estamos doentes. Será que um dia vou poder engravidar ou vou ter medo de engravidar? Nossos leites estão contaminados com mercúrio e nós estamos envenenando o nossos próprios filhos. É isso? O médico olhava, disse isso, infelizmente é.

Dani: A saúde de adultos, mas principalmente de crianças e gestantes foi gravemente impactada.

Alessandra: E o resultado dessas doenças que nós estamos sentindo hoje no nosso corpo, vamos seguir com ela, mas não impacta na vida de quem está no Congresso. O Congresso está querendo nosso território, quer explorar, quer minério, quer construir usina hidrelétrica, uma ferrovia, quer aumentar o desmatamento para plantar soja. E aí as mudança climática entra também, né?

Grazi: Os garimpeiros são os que estão no território, diretamente afetando os mundurukus. Mas, por trás deles, há uma rede de interesses privados, nacional e internacional que lucra com ouro, outros minérios e explorações ilegais, como o ferro e a soja da Amazônia.

Alessandra: A mineradora é boa porque é tudo legal, tudo bonitinho, tá tudo no papel. Mas é pior do que garimpo porque o garimpo é o mercúrio, mas as mineradoras usam um igarapé para botar cianeto, os animais morrem, máquinas chegando, homens chegando dentro do território é pior que existe. Mineradora dizendo que é boazinha, que ele é que planta floresta. Ele está fazendo aquele papel dele de mostrar para conseguir mais financiadores, para ele lucrar dizendo uma palavra bonita. Então a gente não sabe quem é pior: se são os garimpeiros ou as mineradoras.

Dani: Uma possível resposta à pergunta da Alessandra é que o pior é aquele profissional que facilita que o dinheiro flua ….

Isso porque a atuação de criminosos ambientais seria mais limitada sem a possibilidade de lavar o dinheiro.

Grazi: Alessandra Korap aponta ainda a responsabilidade do governo Federal na invasão e contaminação dos territórios.

Isso que os povos originários não costumam ser consultados antes da entrada de uma mineradora, o que desrespeita a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que assegura a participação deles na tomada de decisões que impactam suas vidas.

Alessandra: O governo está fazendo tudo errado porque ele não estava ouvindo os povos indígenas. Eles estão aprovando as leis, eles estão colocando pessoas, falando bonito para fora. Mas infelizmente, dentro do território eles estão aprovando entrada dessas mineradoras ou qualquer projeto: petróleo, ferrovia dentro do território, o impacto vai ser quase a mesma coisa, porque o desmatamento que acontece, o mercúrio vai, infelizmente, pro rio.

BG

Dani: Mineração, desmatamentos, tráfico de madeira são exemplos de crimes ambientais que ocorrem com muita frequência na região amazônica.

Adicione a essa conta da destruição o crime organizado.

Embora os narcotraficantes já usassem a rota amazônica para o escoamento de drogas, a partir de 2020 a Amazônia brasileira se consolidou como o principal corredor de escoamento de cocaína e de skunk, que é um tipo de maconha mais forte.

Aiala: Sou Aiala Collares Couto, geógrafo, pesquisador e professor da Universidade Estadual do Pará, conhecida como UEPA. Também pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e atualmente também atuo como diretor presidente do Instituto Mãe Criola, que é uma instituição voltada para a produção de informações cartográficas e sensíveis acerca das questões que envolvem os povos da floresta na região amazônica.

Grazi: Aiala, qual a importância da localização geográfica da amazônia para a ampliação da presença do narcotráfico na região?

Aiala: A primeira questão tem relação, sim, com a localização geográfica porque essa proximidade em relação os principais produtores de cocaína do planeta e que precisam exportar essa cocaína para a África, para a Europa, neste caso Colômbia, Peru e a Bolívia. Isso acabou colocando o Brasil enquanto uma área de trânsito e a Amazônia enquanto uma rota obrigatória. A outra questão é o fato de que nos últimos anos também vem crescendo de forma considerável o consumo de cocaína no território brasileiro e esse consumo, colocando o Brasil na condição de mercado consumidor em potencial acabou então, fazendo com que houvesse uma reorganização espacial da dinâmica das facções criminosas, que passaram a enxergar a importância que essa região, nesse caso, a Amazônia, ela tem não apenas para essa dinâmica global, mas também para o mercado nacional.

Dani: Mas os crimes ambientais chegaram bem antes do crime organizado na Amazônia:

Aiala: Então nós já ouvimos falar de exploração ilegal de madeira, nesse caso, com uma relação que se estabelecia a partir de uma necessidade de escoamento dessa madeira contrabandeada para a Europa e para os Estados Unidos, nós já ouvimos falar de práticas de grilagem de terra, sobretudo terras para fins de especulação fundiária, o que acabou então, inclusive construindo uma relação bastante conflituosa na zona rural dos estados da Amazônia, porque também se construiu um projeto de miliciarização da questão fundiária, as milícias rurais que surgiram através das práticas de pistolagem, etc, que faziam parte dessa dinâmica de violência do campo. Então, já tínhamos aqui esse esquema de queimadas ilegais, criminosas, enfim, só que dentro de uma estrutura que o narcotráfico não se conectava ou pouco se conectava.

Grazi: E essa conexão foi feita por facções criminosas da região, como a Família do Norte, mas também daquelas que antes estavam presentes só no sudeste do Brasil, como o Primeiro Comando da Capital, PCC, de São Paulo e o Comando Vermelho, CV, do Rio de Janeiro.

Aiala: Então, essa distribuição espacial de facções por todo o território da Amazônia, pq no Amapá nós também temos facções como a Unidade Criminosa Amapaense, a Família do Amapá, e vai fazer com que esses grupos comecem a se aproximar então das rotas que também são utilizadas para contrabandear manganês, casseterita, contrabandear madeira, vão se aproximar das áreas de garimpo, como aconteceu no caso de Roraima, tanto pra apropriação da área de exploração ilegal do ouro quanto também para comercialização de droga dentro do garimpo, nesse caso, trocando a droga por ouro.

Dani: E o crime organizado, que antes só traficava drogas ilícitas, agora também contrabandeia casssiterita e manganês, explora madeira e se apropria ilegalmente de terras públicas para a especulação, comercialização ou lavagem de dinheiro, plantação de maconha…

Essa conexão entre os crimes ambientais e o crime organizado ficou muito mais integrada a partir de 2020, ano da pandemia e com Bolsonaro na presidência:

Aiala: Acabou fortalecendo muito mais esses grupos, porque eles perceberam que a fragilidade das políticas ambientais poderia fortalecer as ações do narcotráfico, dada toda a dificuldade que os órgãos de segurança pública passaram a ter para combater os crimes ambientais. Então, e diante dessa fragilidade que as gerações vão começar a se consolidar. Porque em termos financeiros, o crime organizado, ele consegue ganhar muito mais e consegue se organizar a tal ponto de ter inclusive poder de influência sobre determinados grupos políticos e municípios de estados paraenses.

Grazi: O Aiala conta que cada facção criminosa atua de maneira diferente na região amazônica.

Aiala: A gente vai definir como narco garimpo e tendo o Roraima como exemplo, ele consegue entender o quanto é importante arrendar terras no Pará para plantio de maconha para diminuir a dependência, por exemplo, da maconha do Paraguai ou da produção no Nordeste, Pernambuco e Bahia, por exemplo. Então começa arrendar terra pra cultivar maconha.

Dani: Já o CV do Rio de Janeiro, controla as rotas do tráfico de cocaína e invade territórios dos quilombolas com a intenção de comercializar a terra:

Aiala: Temos exemplos de comunidades quilombolas aqui em Barcarena, no Pará que o CV chegou na comunidade, a comunidade reivindicando a titulação definitiva da Terra, começaram a dividir, começaram a comercializar.

Grazi: Ou seja: enquanto as comunidades quilombolas a muito custo tentam conquistar o direito já garantido pela constituição de ter suas terras tituladas e, dessa forma, garantir o futuro de seus povos; o crime organizado invade suas terras, divide seus povos e comercializa ilegalmente os territórios que tradicionalmente são ocupados há muitas gerações por estas famílias.

Aiala: São modalidades criminais que elas vêem, de certa forma até mesmo comprometendo o modo de vidas dos povos tradicionais da Amazônia. Vem diante do Estado criando uma estrutura de coerção, intimidação. Isso se dá por meio da violência. E que de certa forma tem relação sim, claro, com os crimes ambientais.

Dani: Entrar em território quilombola por meio da violência e comprometer a vida dos povos tradicionais é também um crime ambiental.

Agora com relação as riquezas dali extraídas, quando há controle das autoridades e se encontra mercadoria ilegal, o Aiala explica que embora o contrabando de madeira, ouro e outros minérios sejam crimes ambientais, as autoridades costumam penalizar severamente apenas o tráfico de drogas.

Aiala: Quando me perguntaram uma vez sobre a questão de lavagem de dinheiro com ouro. Eu até perguntei pra pessoa que perguntou mas será que é lavagem? Porque se o ouro já é ilegal e contrabandeado, então uma atividade ilegal não lava a outra atividade ilegal. Isso não serve só pro ouro, serve pra Madeira também porque o valor que se agrega a madeira que sai contrabandeada aqui do Pará ou do Amazonas, ou do Mato Grosso e que é esquentada num município qualquer na Amazónia e que chega até Miami, é um lucro extremamente exorbitante que passa a ser também vantajoso.

Grazi: Esquentar a madeira é um termo que parece com lavagem de dinheiro.

Significa que ela foi extraída de uma reserva ou área em que não se pode cortar árvores, foi transportada clandestinamente até uma área onde há autorização para o corte e a partir dali, saiu para o mercado da Europa ou Estados Unidos com documentos, nota fiscal, como se fosse legal.

Aiala: Neste caso a madeira e cocaína, então, porque não dizer que é uma atividade ilícita que ocorre de forma clandestina, que vem se somar a atitude econômica do crime organizado?

Dani: A exploração ilegal da madeira, minérios e drogas ilícitas deveriam ser coibidas da mesma maneira.

Acontece que crime ambiental e narcotráfico são abordados de maneira distinta pelas autoridades.

Aiala: Quando se encontra num porto sendo escoado para a Bélgica, madeira e cocaína no meio, tem que entender que há uma conexão aí. E geralmente o que acontece, eu ouvi isso de agentes de segurança pública que já participaram de operações, é que separa as coisas. Então vai por um lado a madeira vai pro outro lado cocaína e eles vão tratar aquilo de forma fragmentada. É um problema que inclusive eles mesmos encontram nas operações, porque se encontra manganês, cassiterita e cocaína indo para a Europa numa embarcação, aí eles separam e vão colocar crime de tráfico de drogas, mas não conseguem conectar o crime de tráfico de drogas com os crimes ambientais.

Grazi: As facções criminosas estão próximas aos territórios quilombolas e indígenas nos estados do Pará, Amazonas, Roraima e Acre.

Como consequência desses crimes, a taxa de morte violenta intencional na amazônia é 54% superior ao resto do país, segundo o anuário brasileiro de segurança púbica.

Dani: Faltam policiais, mas faltam também políticas públicas e modelos alternativos de desenvolvimento para que as populações possam viver com dignidade.

É fundamental que máquinas sejam apreendidas e os garimpeiros sejam tirados dos territórios indígenas. Mas… E depois? Como vão sobreviver?

Na opinião de Aiala, é preciso que sejam criadas oportunidades para que essas pessoas possam trabalhar em outras atividades, para que de fato saiam do garimpo:

Aiala: A gente tem hoje o discurso de agir para defender a floresta, para defender os povos da Amazônia. As operações de tirar os garimpeiros do território indígena, mas ao mesmo tempo tem que destacar que é preciso também ver quais são as possibilidades de oportunidade que devem ser criadas dentro de um modelo sustentável de desenvolvimento que permita com que esse garimpeiro que foi tirado do garimpo ele possa ter uma outra possibilidade, ou que aquele município que depende do garimpo possa ter uma outra alternativa ao mesmo tempo também entendendo que esse garimpeiro sai de Roraima e vem para Jacareacanga, vai pra Itaúba, vai pro Amapá, eles ficam nessa mobilidade.

Grazi: Então: o garimpeiro que é expulso de uma área vai procurar ouro em outro lugar, já que esta é a maneira que ele encontrou para sobreviver. É uma situação muito complexa, mas que se resolveria com vontade política.

E por falar em vontade política, países da região precisam cooperar entre si, pois se o Brasil agir sozinho, não conseguirá combater o crime:

Aiala: E é importante também frisar que a segurança pública, no caso, pensada para a Amazônia ela tem que começar a pensar na conexão que tem que estabelecer entre a segurança pública do Brasil na Amazônia, com a segurança pública dos países vizinhos, porque tem essa conexão transnacional. E o maior exemplo disso é o avanço de facções colombianas para atuar dentro do território brasileiro pelo Amazonas e avanço de facções da Venezuela também para atuar dentro do território brasileiro, bem como também cada vez maior a presença de venezuelanos trabalhando para facções brasileiras em estados da Amazônia, a exemplo do Estado do Amazonas, inclusive.

SOBE BG

Grazi: O sistema financeiro e sua rede internacional são facilitadores de crimes ambientais.

Seria muito mais difícil a lavagem de dinheiro acontecer se advogados, contadores, banqueiros, parassem de facilitar esses mecanismos de lavagem de dinheiro e, consequentemente a manutenção desses crimes.

Dani: E onde vai parar esse dinheiro de criminosos, incluindo os ambientais, cometidos na Amazônia?

Grazi: Grande parte do dinheiro desses crimes é lavado nos Estados Unidos da América.

Os dados são de um relatório, lançado em outubro de 2023 pela FACT Coalition, que é uma rede de organizações justiceiras fiscais nos EUA.

O relatório traz também dados da Interpol que revelam que estes fluxos representam pelo menos 281 bilhões de doláres de rendimentos anuais para criminosos.

Dinheiro que transita facilmente através de uma rede de sigilo e paraísos fiscais global, como explica Vivian Calderoni, coordenadora de Programas e Pesquisas do Igarapé, instituto brasileiro aliado da FACT Coalition.

Vivian: Os crimes ambientais, especialmente aqueles perpetrados na Amazônia, eles são percebidos como de alto lucro e baixo risco pelas organizações que o operam. Eles têm um impacto financeiro muito grande, porque na maior parte dos crimes ambientais, os bens só têm valor quando ingressam na economia formal.

Dani: Como um dos maiores facilitadores de corrupção global apontado no Índice de Sigilo Financeiro da TJN em 2022, os Estados Unidos têm sido um porto seguro para fluxos financeiros provenientes de crimes ambientais cometidos na região amazônica que contribuem para a degradação ambiental e as alterações climáticas, bem como ameaçam a segurança nacional e a segurança pública.

Vivian: O ouro, outros minérios, a madeira, ou até mesmo a pecuária, a agropecuária, têm alto valor quando são inseridos no mercado formal. Então, é fundamental que eles ganhem um banho de legalidade, para que eles ganhem valor de mercado, tanto para serem comercializados, nacionalmente, quanto internacionalmente.

Grazi: Aliás, os crimes ambientais afetam diretamente os povos e comunidades tradicionais amazônidas, mas os efeitos climáticos se sentem no país todo.

As terríveis ondas de calor e tempestades que estamos vivendo no Brasil, em especial nesse novembro de 2023, são decorrentes da degradação ambiental no Cerrado e na Amazônia.

Dani: Crime ambiental é o terceiro maior tipo de atividade criminosa do mundo.

Além dos impactos na natureza e para as populações, os crimes ambientais, também prejudicam a economia. Que tipo de crimes são praticados de forma a permitir que o dinheiro sujo dos crimes ambientais sejam inseridos na economia formal e usufruídos por criminosos?

Vivian: As fraudes, a corrupção e a lavagem de dinheiro. Esses são três crimes essenciais para dar essa aparência de legalidade, em que são fraudados documentos sobre a origem, por exemplo, desses bens florestais, ocultando as origens ilícitas e colocando, então, nesses documentos oficiais, porém fraudados, uma origem lícita, legal. Que possibilite que ele seja comercializado.Esse é um exemplo muito comum. Cada cadeia tem um ponto de atenção.

Grazi: E os Estados Unidos são responsáveis por facilitarem os fluxos financeiros ilícitos, mostra o relatório da FACT Coalition.

Vivian: Quanto menos as instituições estiverem preparadas para identificar os fluxos financeiros ilícitos, mais fácil ficará. É fundamental que hajam políticas de transparência, de rastreabilidade, políticas, ferramentas, instrumentos que possam identificar operações de risco, operações suspeitas, para que, então, o sistema antilavagem de dinheiro de cada país possa operar em todas as suas dimensões. São elas preventiva, de inteligência financeira, os reportes que as entidades obrigadas a comunicar operações suspeitas enviam às unidades de inteligência financeira, investigação, aplicação da lei e sanções.

Dani: Por um lado, os EUA tem uma forte estrutura de combate à lavagem de dinheiro.

Mas, por outro, permite o uso de entidades anônimas e tolera a não adequação de advogados e contadores às regras de combate a este crime.

Esses elementos tornam o país um grande receptador de fluxos financeiros ilícitos provenientes de crimes ambientais, demonstra o relatório da FACT Coalition.

Vivian: É fundamental que essas instituições e essas normas estejam cada vez mais conectadas, cada vez mais priorizando o olhar para o combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, advinda dos crimes ambientais, especialmente aqueles ocorridos na Amazônia. Então, essas instituições precisam ter avaliações setoriais de risco, red flags associadas para as questões justamente que operam dentre as cadeias criminosas ambientais.

Grazi: Esse é um esforço que deve partir de cada país, mas também no cenário regional e global.

Cada país tem suas particularidades. Porém, todos eles têm instituições, legislações, normas dedicadas à prevenção e à punição e investigação da lavagem de dinheiro.

Mas um problema que aflige toda a humanidade e, por óbvio, também as instituições governamentais, é a falta de comunicação entre os órgãos que poderiam acabar com o fluxo financeiro ilícito.

Vivian: Fundamental a cooperação entre agências nacionais para que esse serviço de inteligência, de investigação, e que baseado também nos reportes de operações suspeitas, possam operar de modo eficiente. Que estejam realmente priorizando a questão dos crimes ambientais e que possam, então, dar vazão e identificar esses fluxos financeiros ilícitos ou suspeitos, para que depois, na justiça, seja discutida de fato são ilícitos ou não. Então essa comunicação entre agências, entre as unidades de inteligência financeira,entre os órgãos de investigação como a polícia e o Ministério Público e as autoridades ambientais precisam se estreitar.

Dani: Atualmente nos Estados Unidos, é mais fácil abrir uma conta secreta do que fazer uma carteirinha na biblioteca pública!

Por isso, o relatório da FACT Coalition recomenda que os EUA acabe com o sigilo financeiro excessivo e com a imensa facilidade de abrir empresas anônimas, e torne todo o processo muito mais transparente.

Sobe BG

Grazi: O dinheiro sujo dos crimes ambientais acaba chegando aos paraísos fiscais e, a partir dali, com mecanismos de lavagem de dinheiro, conseguem entrar no mercado formal.

A gente já falou algumas vezes nesse episódio em fluxo financeiro ilícito. Mas como se define?

Quem responde é Florencia Lorencio, pesquisadora da Tax Justice Network.

Florencia: Quando a gente está falando de fluxos financeiros ilícitos, a gente está falando de transferências financeiras que são proibidas, seja pela letra da lei, por alguma regulamentação, mas também pelo costume. E aí o que eu quero dizer com isso? Fluxos financeiros ilícitos é um conceito propositalmente amplo que tenta dar conta de uma dinâmica dual, desses fluxos financeiros. Por um lado você tem fluxos financeiros que são estritamente ilegais, e aqui eu estou falando de fluxos tipificados como lavagem de dinheiro, ou dinâmicas de evasão fiscal e estrito de senso. Porém, esse conceito também tenta dar conta daqueles fluxos financeiros que, se bem não estão estritamente em oposição à letra da lei, eles estão indo de encontro com o espírito da lei. E aí a gente pode pensar, por exemplo, em dinâmicas de elisão fiscal, na qual empresas transferem seus lucros para jurisdições de baixa tributação.

Dani: Na teoria, elisão fiscal é o que não está configurado exatamente dentro do crime de sonegação fiscal, mas está ali, muito próximo.

Um exemplo é o uso de trusts, em que não se sabe quem são os reais donos de uma empresa.

E são justamente essas brechas legais que advogados e contadores usam que acabam inclusive permitindo fluxos financeiros ilícitos.

Mas na prática, muitos especialistas dizem que a diferença entre evasão e elisão fiscal é que a evasão já foi investigada e elisão é tudo que ainda não foi julgado.

É por isso que costumamos chamar os dois de abuso fiscal.

Florencia: É central que todos os países garantam que as empresas,ou outras entidades legais que operam no seu país, pensando em trust, fundações, etc., que todos elas, a gente tenha um grau suficiente de transparência sobre quem são os seus proprietários, proprietários legais, mas também beneficiários finais. A gente precisa saber quem são as pessoas que estão se beneficiando dessas transações e que, em última instância, portanto, estão se beneficiando desses crimes ambientais.

Grazi: Esses fluxos financeiros ilícitos e mesmo aqueles advindos por exemplo de lucros de multinacionais ocorrem tão facilmente pela falta de transparência fiscal.

Ao saber que podem usar empresas secreta e paraísos fiscais, criminosos se sentem tranquilos para seguir destruindo a Amazonia e enviar seu dinheiro sujo através desses mecanismos, para países onde conseguem lavar dinheiro e usar de forma legal dinheiro vindo do crime.

Por exemplo, um traficante de madeira da Amazonia pode ter uma empresa em Delaware, nos EUA, e ninguém nunca saberá a origem de sua fortuna caso não se saiba quem é o beneficiário final da empresa.

Dani: Afinal, de que forma um país garante que os tributos estão sendo pagos de maneira justa?

Florencia: É muito importante que a informação sobre as empresas que operam nos nossos países seja pública. A gente está falando de registros públicos de beneficiários finais, que isso permite, por exemplo, ativistas ligados à causa ambiental a saber quem, de fato, está ganhando com o desmatamento, com a poluição, quando o resto da sociedade, obviamente, está perdendo. Os registros de beneficiários finais eles têm que dar conta não só das empresas ou entidades legais que são estabelecidas no país dentro do marco legal do país mas também daquelas empresas que são estrangeiras que estão operando no país, uma coisa que alguns registros de beneficiários finais ainda não estão tomando em consideração de forma muito efetiva.

Dani: Além de registros públicos dos beneficiários finais das empresas, a Florência explica que é fundamental reformar a definição de crime antecedente nas leis de lavagem de dinheiro.

Mas antes de avançar, o que é crime antecedente?

Florencia: Crime antecedente são esses crimes que são cometidos e que uma vez que a pessoa tenta ocultar as receitas desses crimes ela está cometendo crime de lavagem de dinheiro. Então, definições comuns de crime antecedente envolvem por exemplo crime organizado, evasão fiscal também pode envolver tráfico de drogas ou financiamento do terrorismo e tudo isso opera como um crime antecedente que depois, se a pessoa tenta ocultar a origem desses fundos ela está cometendo crime de lavagem de dinheiro.

Grazi: A redefinição do que é crime antecedente é importante para que se dê conta das diferentes naturezas dos crimes ambientais.

Florencia: Crimes ambientais nem sempre estão compreendidos nessa definição então é muito importante que os países se assegurem que eles possuem uma boa definição de crime antecedente nas suas legislações diante de lavagem de dinheiro.

Dani: Outro mecanismo fundamental de combate aos crimes financeiros e ambientais é a troca de informação entre países.

Florencia: A gente está falando de dinâmicas que operam entre diferentes países então é muito importante que os países tenham um bom marco de intercâmbio de informação e aí que idealmente com todos os países porque se você tem uma brecha a pessoa que está querendo ocultar vai usar essa brecha. Mas, no mínimo os principais países que cometeu um crime antecedente são os quais, enfim existem canais de atividade econômica intensa é sempre importante que esses canais de intercâmbio de informação estejam em muitas boas condições.

Grazi: Como os países poderiam usar essas informações trocadas para promover proteção ambiental?

Florencia: Para conduzir investigações de crimes de outra natureza então, por exemplo se a autoridade tributária do Brasil, a Receita receber informações suspeitas sobre determinadas contas bancárias no exterior é importante que ela tenha um marco legal que permite ela usar essa informação para analisar crimes de natureza ambiental crimes de lavagem de dinheiro enfim, dar um uso mais ampliado para essa informação senão ela acaba muito compartimentalizada no âmbito do estado.

BG Fechamento

Grazi: Os crimes contra a natureza precisam estar mais presentes na política global, nos diálogos sobre mudanças climáticas, segurança nacional e segurança pública.

Os EUA, como principal fornecedor de sigilo financeiro, têm um papel crucial a desempenhar e têm que passar a negar ser um refúgio financeiro seguro aos criminosos que degradam nosso meio ambiente.

Todas as medidas fiscais do relatório da FACT Coalition e que a Florência trouxe neste episódio podem ser usadas como ferramenta para combater os crimes ambientais e precisam ser implementadas o mais breve possível.

A boa notícia é que em 22 de novembro de 2023 tivemos um marco histórico para que essas medidas de fato venham a acontecer.

Isso porque nesta data foi aprovada a resolução apresentada pelo grupo africano, que leva à construção de uma Covenção Tributária Global na ONU, com todos os países participando da sua construção e tomada de decisões.

É um momento para celebrar a democracia no mundo da justiça fiscal.

Agora, é pegar todo o ânimo dessa vitória e transformar em motivação para seguir na construção da Convenção, garantir o orçamento necessário na reunião do quinto comitê da ONU em dezembro de 2023, e depois, nas diversas reuniões do comitê responsável pela Convenção.

Vem trabalho, mas também possibilidade de muita justiça fiscal global.

BG

Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David.

Um abraço e até o próximo.

Dani: Um abraço e até a última quinta-feira antes do natal.

Outras Fontes

1

A floresta doente: as crianças munduruku que não brincam e podem estar contaminadas por mercúrio, reportagem de Daniel Camargos e Júlia Dolce para a Repórter Brasil

2

Cartografia das violências na região amazônica: relatório final do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

3

Relatório (em inglês) da Fact Coalition: Dirty Money and the destruction of the Amazon

4

Facções controlam tráfico e financiam crimes ambientais na Amazônia, diz pesquisador, reportagem de Leandro Machado na BBC Brasil

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#4 A tributação pode solucionar a crise climática?

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É Da Sua Conta
#63 Poluidores devem pagar pela crise climática
Um dos setores que mais polui no mundo é o de transporte marítimo. Em 2022, 858 milhões de toneladas de gás carbono foram emitidas por embarcações no mundo todo. Deste total, 63% vêem dos navios gigantes dos países que fazem parte da OCDE. Além dos danos ambientais, essas corporações internacionais são também as que menos pagam impostos. Com justiça tributária também se combate a crise climática. Esse é o tema episódo #63 do É da Sua Conta
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