#65 Comida saudável barata, ultraprocessada com imposto
#64 Direitos humanos podem tornar a tributação mais justa
#66 Facilitar abuso fiscal é neocolonização do Reino Unido
Convidadxs

Bebidas açucaradas, pães industrializados, chocolates, sorvetes, salgadinhos. Estes são alguns dos tipos de produtos classificados como ultraprocessados. Estudos científicos comprovam que padrões alimentares baseados em ultraprocessados causam o aumento de doenças como diabetes, hipertensão, depressão e cânceres. Só o tratamento de saúde relacionado ao consumo de bebidas açucaradas custa cerca de 3 bilhões de reais ao SUS anualmente.

O papel da tributação para diminuir o consumo de ultraprocessados e aumentar a oferta de alimentos saudáveis é o tema do episódio #65 do É da Sua Conta.

Ouça no episódio #65:

  • Qual a diferença entre produtos ultraprocessados e alimentos? Quais os danos que causam à saúde e ao meio ambiente? Quem responde é Ana Paula Bortoletto (Nupens-USP).
  • Os interesses da indústria alimentícia em promover produtos que não são comida, com João Peres (O Joio e o Trigo)
  • Tributação de ultraprocessados na reforma tributária, com Marcello Baird (ACT Promoção da Saúde)
  • A reprecificação, o imposto seletivo e como incentivar a alimentação saudável e desincentivar ultraprocessados, com Florência Lorenzo (TJN).

“Os ultraprocessados causam um impacto grande na conta pública dos gastos em relação a obesidade, diabetes, hipertensão, vários tipos de câncer e até na mortalidade precoce. Tem também um impacto social. Reduz a qualidade de vida das pessoas e  aumenta o número de vezes que a pessoa tem que se ausentar do trabalho para se tratar..”
~Ana Paula Bortoletto, (Nupens – USP)

 “Nestlé, Danone, Unilever, PepsiCo são estruturas corporativas voltadas para a produção de lucro. Aquilo que elas entregam como produto final interessa muito pouco do ponto de vista da qualidade. A qualidade só vai interessar quando estiver alinhada com o lucro.”
~João Peres, O joio e o trigo

“A depender da Lei de Regulamentação da reforma tributária pode ocorrer um desastre sanitário, porque todos os produtos ultraprocessados poderiam entrar nessa alíquota reduzida, caindo muito o que eles pagam de imposto atualmente.”
~ Marcello Baird, ACT Promoção da Saúde

“É preciso combinar a implementação do imposto seletivo com medidas educativas sobre ultraprocessados junto às crianças e às famílias, políticas de acesso a atividades esportivas, de mobilidade ativa… trata-se de uma política integral de saúde.”
~ Florencia Lorenzo, TJN

Transcrição

Criança da Grazielle David conversa com ela sobre as frutas que está comendo

Daniela Stefano: Grazi, Como é a exposição do seu pequeno aos ultraprocessados?

Grazielle David: Dani, ele já provou algumas coisas, principalmente em aniversários de amigos de escola. O que me pede quando vê é suco e chocolate. O mais duro é chocolate, porque fica na boca do caixa do supermercado, da padaria, e o pior ele já vai pegando e pedindo para abrir.

Dani: Será que a tributação pode ajudar mães e pais a oferecer alimentos mais saudáveis pras crianças?

Música de abertura É da Sua Conta

Grazi: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas e o planeta. Eu sou a Grazielle David.

Dani: E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal. Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.com e nos mais populares tocadores de áudio digital.

Música de abertura É da Sua Conta

Grazi: O papel da tributação para diminuir o consumo de produtos ultraprocessados e aumentar a oferta de alimentos saudáveis é o tema do episódio #65 do É da Sua Conta.

Dani: Eles estãos nos mercados, nos pontos de ônibus, nas estações de metrô, fazem parte da vida de muitas pessoas. E às vezes, na hora daquela fome no meio da rua, são a única opção que temos para enganar o estômago.

Ana Paula Bortoletto: Os produtos ultra-processados clássicos são refrigerantes, bebidas açucaradas no geral, produtos congelados prontos para consumo, bolos, pães que são produzidos industrialmente, chocolates, todo tipo de bala, sorvete, sobremesas prontas, salgadinhos e por aí vai.

Grazi: Essa é a Ana Paula Bortoletto. Ela é nutricionista, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, o Nupens. Qual a diferença entre alimentos e  produtos ultraprocessados?

Ana Paula: Os alimentos vêm da natureza, podem ser consumidos in natura ou então consumidos a partir dos processamentos mínimos como secagem, extração de partes não comestíveis, combinados com ingredientes culinários, como sal, açúcar, óleos e que compõem as preparações culinárias. O produto ultra-processado ele geralmente entra para substituir as preparações culinárias ou os alimentos in natura. O ultraprocessado passa por várias fases de processamento industrial, que ele pode conter geralmente açúcar, gordura, sódio em quantidades altas porque ao você recombinar as substâncias por exemplo você adiciona xarope de açúcar, proteínas isoladas, ou algum outro tipo de substância, você recompõe o produto na indústria.

Grazi: Já existem diversos estudos científicos que comprovam que padrões alimentares baseados em ultraprocessados estão causando o aumento de doenças como diabetes, hipertensão, depressão e cânceres. Ana Paula, de que forma isso afeta o sistema de saúde?

Ana Paula: De uma forma intensa os gastos públicos com tratamentos na atenção à saúde para acompanhamento das pessoas que desenvolvem doenças crônicas não transmissíveis, que são doenças que não vão ter uma cura imediata, vão exigir o uso de medicamentos continuamente, vão exigir o acompanhamento médico constante, exames. E quando isso avança para casos mais graves, há necessidade de internações, cirurgias e outros procedimentos que acontecem das complicações dessas doenças. Todo esse conjunto de doenças traz um impacto grande na conta pública dos gastos em relação a obesidade, diabetes, hipertensão, vários tipos de câncer e até na mortalidade precoce. Tem um impacto também social, ao a gente estar reduzindo a qualidade de vida das pessoas, reduzindo o tempo de trabalho, aumenta o número de vezes que a pessoa tem que se ausentar do trabalho para se tratar em relação a isso.

Dani: O sistema de saúde brasileiro gasta quase 3 bilhões de reais por ano com o cuidado de doenças derivadas do consumo de bebidas açucaradas. Os ultraprocessados também causam danos ao meio ambiente de três maneiras. A primeira é a perda da biodiversidade:

Ana Paula: São ingredientes que vêm de uma produção agrícola intensiva. Então, eles se aproveitam desse sistema de produção de monocultura para garantir o acesso a ingredientes baratos como o açúcar, o trigo, o milho, a soja.

Grazi: Os ultraprocessados também contaminam os solos. Por exemplo, aumentam a quantidade de plástico no meio ambiente devido ao uso de embalagens.

Ana Paula: Os ultraprocessados têm essa característica intrínseca de virem embalados, inclusive pra uma informação, uma publicidade sobre eles, que destaquem os atributos positivos e os tornem mais atrativos para os consumidores. Então, a embalagem está muito relacionada a esses produtos. Além de também possuírem aditivos com a intenção de serem mais práticos, ter a durabilidade maior, então isso exige que a embalagem esteja sempre presente.

Dani: Os ultraprocessados são também responsáveis por parte das emissões de gases de efeitos estufa:

Ana Paula: O processo industrial em si, até chegar ao consumidor, ele exige que se tenha gastos com transporte, armazenamento,  tende a ser muito maior em comparação a você consumir por exemplo, alimentos produzidos localmente por agricultores familiares em menores escalas e que não exigem um transporte tão grande e um gasto de energia, de combustíveis, de água tão grande quanto esses produtos tendem a apresentar. São impactos ambientais muito relevantes, ainda mais quando a gente fala de produtos de origem animal, e aí com isso a gente soma os impactos também provocados pela pecuária intensiva, que está relacionada com o maior desmatamento aqui no Brasil.

Grazi: Os produtos ultraprocessados causam males à saúde das pessoas, geram custos ao sistema público de saúde e ainda contribuem com a crise climática.

Ana Paula: A gente entra nas políticas que a gente chama de regulatórias, que são aquelas que vão estabelecer limites por exemplo, para oferta de ultraprocessados nas escolas, nas cantinas, que a gente já tem algumas medidas acontecendo, mas ainda numa escala pequena. A gente precisa ampliar essas medidas de proibir haver ultraprocessados nas escolas. A gente precisa avançar com regras mais específicas e que sejam em relação à restrição da publicidade de ultraprocessados e aí principalmente pensando nas crianças como alvo mais fácil e frequente dessas indústrias para vender mais seus produtos. A questão dos impostos, colocando um preço mais alto, a gente sabe que reduz a demanda e reduz o consumo desses produtos. E a última política que a gente começou a caminhar, mas ainda temos um espaço a melhorar é garantir a informação no rótulo dos alimentos sobre os riscos que esses produtos podem trazer à saúde.

Som de vendedor ambulante oferecendo bala e chocolate

Dani: Falta de rótulos que alertem sobre os riscos, preços baixos e acesso facilitado aos ultraprocessados estão relacionados com uma indústria que investe pesado na manutenção desse sistema, seja com lobbies no parlamento ou na publicidade, muitas vezes dirigida às crianças. Na disputa para garantir o acesso a alimentos saudáveis, é preciso que a população saiba o que está comendo. E uma mídia que vem trazendo este tipo de informação é o Joio e o Trigo.

João Peres: Eu sou João Peres, repórter, editor e diretor de O Joio e o Trigo.

Dani: O joio e o trigo é uma plataforma de jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder e que deixa nítido que tem lado: é o do bem estar das pessoas, dos animais e do planeta. Em 2020 lançaram o podcast Prato Cheio. E o primeiro episódio foi sobre ultraprocessados.

João: Sempre que se trata de alimentação tem muitas camadas né. A gente mexe com muitas sensibilidades porque todo mundo tem uma relação de afeto com alimentação algumas vezes esse afeto também vem de um lugar de dor, da privação da comida ou de qual lugar que isso ocupou na sua vida em algum momento. Então sempre nos nossos posicionamentos a gente tenta fazer essas ponderações de que é duro, é difícil e é triste chamar de produto e não de alimento aquilo que boa parte da população acaba obrigada a comer.

Grazi: Em um dado momento o podcast Prato Cheio explicou à audiência o por quê de chamar ultraprocessados de “produto”.

João: Na minha opinião ele é inerentemente enganoso. Quando a gente troca o leite pelo soro de leite reconstituído, quando a gente troca uma gordura de boa fonte por uma gordura de uma fonte ruim, como foi o caso das gorduras trans, que causam tantas mortes, a gente está levando a um problema de saúde pública. E um problema de saúde pública que é em escala global. Então, acho que por isso que a gente entende que é importante explicitar essa questão para endereçar mudanças profundas né?

Dani: JBS, Neslté, Danone, PepsiCo, Unilever, Coca-cola. As indústrias de ultraprocessados estão nas mãos de um punhado de empresas multinacionais e que cada vez mais controlam os sistemas alimentar, econômico e político. Nas reportagens publicadas pelo Joio e o Trigo há vários exemplos deste poder das empresas.

João: Quando a gente fala de Nestlé, Danone, Unilever, PepsiCo, a gente está falando de estruturas corporativas voltadas para a produção de lucro elas não são voltadas para a produção de alimentos. Então, aquilo que elas entregam como produto final interessa muito pouco do ponto de vista da qualidade. A qualidade só vai interessar quando ela também estiver alinhada com o lucro.

Grazi: Em uma reportagem de o Joio e o Trigo há exemplos de dois CEOs, um da Danone e outro da Pepsi que, por um tempo, conseguiram propor mudanças para oferecer alimentos mais saudáveis e menos impacto ao meio ambiente. Mas os acionistas acharam o processo caro demais e os respectivos CEO’s foram demitidos.  Por que adotar medidas mais saudáveis na indústria atrapalha os lucros das empresas?

João: A estrutura delas tem que estar sempre voltada para o menor custo possível. E isso vai significar um monte de coisas, como por exemplo, espremer direitos trabalhistas, sonegar impostos, evitar o recolhimento de direitos em geral, espremer os fornecedores. Passa por essa questão da formulação. Então elas têm que garantir a formulação mais barata possível. E esse menor custo possível, ele é diretamente proporcional aos danos que essas empresas causam à nossa saúde. Quanto mais elas fragmentam, quanto mais elas se valem desses processos, mais elas correm risco de criar produtos que acabem ocasionando uma série de danos e aí é importante dizer que a gente está só começando a saber esses danos. Eles são enormes, assustadores mas com certeza a gente ainda vai descobrir muita coisa pior pela frente.

Dani: Mas os produtos ultraprocessados são saborosos, baratos e práticos. Para a vida apressada dos grandes centros urbanos é bastante conveniente enganar o estômago com um salgadinho ou uma bolacha. E pouco nítida a relação entre o consumo desse tipo de produto com a explosão de doenças como obesidade, diabetes, transtornos. Como parar a indústria de comida ruim?

João: As corporações de ultraprocessados têm uma característica que marca o estado do capitalismo no século 21, que é a fragilidade em relação àquilo que produzem. Acho que uma vez que a gente tenha acesso à informação digital sobre o que esses produtos causam e sobre como eles não são necessários, acho que a gente teria espaço para deslegitimar essa indústria no espaço público da mesma maneira como aconteceu com a indústria de cigarro por exemplo.

Grazi: Em ano de eleições municipais no Brasil, também podemos pensar melhor em quem vamos votar e exigir que candidaturas incluam a alimentação saudável em seus programas de governo.

João: Acho que tem uma série de coisas que a gente sabe que as prefeituras podem fazer, como, por exemplo: criar espaços para comercialização diretamente por agricultores, especialmente os que são de base orgânica ou agroecológica, desestimular o uso de agrotóxicos com políticas públicas voltadas a isso. Ele pode ter uma política super importante no espaço municipal, que é a alimentação escolar, então cumprir com a cota de agricultura familiar da alimentação escolar é algo que induz produção, que fortalece os agricultores, fortalecer assentamentos, criar estradas que levem os assentamentos até o público consumidor.

Dani: E os municípios podem também restringir o acesso aos ultraprocessados:

João: Restringir a exposição de ultraprocessados em supermercados, por exemplo aquele lugar na chegada do caixa, aquele corredorzinho fatal onde tem Coca-Cola e um monte de ultraprocessados, ali pode ser um espaço de regulação municipal, por exemplo, de proibir esse tipo de produto nessa hora que a gente sabe que é uma hora particularmente complexa para crianças, elas são muito expostas a essa última prateleira na hora que chega no caixa.

Grazi: Na descrição deste episódio, em www.edasuaconta.com você encontra o link pra ouvir os episódios do podcast Prato Cheio, de o Joio e o Trigo.

Música para introduzir tema

Dani: Para promover o direito humano à alimentação e nutrição adequadas é fundamental que o alimento saudável esteja duplamente disponível. Isso é, ele deve ter o preço mais baixo no mercado e estar o mais próximo possível das pessoas. Dessa forma permite que as pessoas escolham os alimentos saudáveis.

Grazi: A tributação pode aumentar o preço do produto ultraprocessado enquanto abre espaço para tornar o alimento saúdavel mais barato. Isso é, o imposto pode ser usado para reprecificar – esse é um dos 5 Rs da tributação.

Dani: Se você é ouvinte do É da Sua Conta, já conhece os 5Rs, pois estão explicados em diversos episódios. Mas, tudo bem se você está chegando agora. Os 5Rs são receita, redistribuição, representação, reparação, e reprecificação.

Grazi: A Florencia Lorenzo, pesquisadora da Tax Justice Network, comenta brevemente para que servem os 5Rs da tributação.

Florencia Lorenzo: Redistribuição, entre aqueles que têm maior capacidade contributiva e aqueles que têm menos.  Recursos, arrecadar para o Estado para prover serviços públicos. Representação, que é super importante para a consolidação de governos responsivos. Os impostos como potencial mecanismo de reparação. Mas o que talvez seja o que vem mais à mente quando a gente pensa em saúde é justamente o mecanismo de reprecificação.

Dani: Reprecificação é o R que mais nos interessa nesse caso da relação entre imposto e saúde.

Florencia: Quando a gente está falando de reprecificação, tem várias abordagens possíveis, mas a  gente está falando de internalizar um custo interno ou externo de determinada atividade ou produto social dentro do produto. Então, o Estado, quando ele atua, a partir de, por exemplo, o que agora está na discussão do imposto seletivo, basicamente o que ele está querendo fazer é incluir no preço do produto determinada externalidade que esse produto possui. No caso, quando a gente está falando do imposto seletivo e o impacto de certos produtos na saúde, o objetivo do Estado é justamente dissuadir os consumidores a consumir esse produto.

Grazi: Porém, a população de baixa renda vem consumindo cada vez mais os ultraprocessados por estarem cada vez mais baratos e disponíveis. Assim, colocar um imposto seletivo a mais sobre eles poderia ter um efeito de aumentar desigualdades. Florencia, como desenhar esse imposto com o objetivo de promover saúde e ao mesmo tempo não ampliar desigualdades?

Florencia:  O imposto seletivo, em última instância, é um imposto sobre o consumo. Então, como outros impostos sobre o consumo, ele tem uma natureza regressiva. Nesse sentido, a gente precisa pensar quais mecanismos podem acompanhar o desenvolvimento do sistema tributário como um todo, para que em sua totalidade ele não aumente as desigualdades. E aí é muito importante que o imposto de renda esteja funcionando de forma efetiva, que a gente feche brechas legais que permitem que pessoas ricas paguem menos impostos, porque, em última instância, falar de imposto e saúde não é só falar sobre imposto seletivo, é falar também sobre a existência de recursos para financiar   um ecossistema de políticas públicas que vai determinar a saúda das pessoas de forma geral.

Dani: O cigarro é um caso clássico de reprecificação de produto que faz mal à saúde. Ele foi adotado no Brasil há anos através do aumento do Imposto sobre produto Industrializado, o IPI.

Florencia:  A gente conhece muito sobre o impacto disso já histórico nos cigarros, uma alíquota maior para os cigarros como uma forma de dissuadir o consumo de cigarros. E agora tem se trazido muito à tona, principalmente agora que a gente tem a discussão sobre a regulamentação do imposto seletivo. Basicamente é um imposto seletivo que busca precificar o impacto sobre o meio ambiente ou a saúde. Também entrou muito a discussão sobre os ultraprocessados e as bebidas açucaradas.

Grazi: Regulamentação do imposto seletivo?… Vamos por etapas… Em 2019, com a Proposta de Emenda Constitucional 45, a PEC 45, o Brasil iniciou o processo de reforma da tributação sobre o consumo. Em 2023 ela foi aprovada como Emenda Complementar, a EC 132, que simplificou de 5 para 3 os impostos sobre o consumo. São eles: Imposto sobre bens e serviços, IBS, Contribuição sobre bens e serviços, CBS e Imposto Seletivo, IS.

Dani: Acontece que os detalhes de cada um dos 3 novos impostos ficaram para ser definidos em lei complementar que deve regulamentar a emenda constitucional. A lei de regulamentação já foi aprovada na Câmara dos Deputados, mas deve ser votada pelo Senado em novembro de 2024, após as eleições municipais.

Grazi: O Imposto Seletivo, por exemplo, deve incidir sobre produtos e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. É por isso que esse será o imposto usado com o objetivo de promover os direitos à saúde, à alimentação e nutrição adequadas. Ou seja: o imposto seletivo pode ser aplicado aos ultraprocessados.

Dani: Como os ultraprocessados aparecem na Emenda Constitucional da reforma tributária?  Quem explica é Marcello Baird, coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde.

Marcello: Na reforma constitucional, na PEC 45, que foi aprovada em 2023, ali não traz nenhuma previsão específica sobre quaisquer produtos. Então, não teve nenhum avanço nessa etapa. O que se aprovou, e que eu acho que já foi um avanço, foi se constitucionalizar o imposto seletivo, que é esse imposto específico para tudo que é nocivo à saúde e ao meio ambiente.

Grazi: Na Emenda Constitucional 132 também ficou prevista uma cesta básica de alimentos com imposto zero e uma lista de produtos alimentares com alíquota reduzida em 60%.

Marcello: Significa que provavelmente esse produto vai pagar uns 10% de impostos apenas. E ali ficou como alimentos no geral.  Isso abrir uma brecha muito grande pra regulamentação, como a indústria depois veio a defender, que todos os alimentos entrassem na alíquota reduzida, pagando só 10% de imposto. Então, isso, a depender de como venha a regulamentação, seria um desastre sanitário, porque todos os produtos ultraprocessados, poderiam entrar nessa alíquota reduzida, caindo muito o que eles pagam hoje.

Dani: Atualmente, os produtos ultraprocessados são tributados, em sua maioria, com alíquota de 100% dos impostos sobre o consumo vigentes. Isso é, pagam o imposto em si, mas não existe um adicional, um imposto seletivo para desestimular seu consumo. Somente os ultraprocessados que haviam entrado como itens da antiga cesta básica não pagavam imposto. É o caso da margarina e alguns biscoitos, principalmente por  beneficios fiscais dos estados. Mas um decreto de 2024 alterou a composição da cesta básica. Agora tem menos ultraprocessados  nela.

Grazi: Já na reforma tributária, o texto constitucional não definiu quais alimentos compõem a cesta básica com alíquota de 0%, nem os alimentos que teriam alíquota reduzida em 60%. As listas do que entra na cesta básica e na alíquota reduzida ainda serão regulamentadas, mas a proposta favorece a alimentação saudável.

Marcello: A proposta de cesta básica e de alíquota reduzida para alimentos, ela foi muito muito positiva no geral, apesar de precisar de algumas melhorias, mas porque ela seguiu basicamente o guia alimentar para a população brasileira, documento do Ministério da Saúde de 2014, que é referência no mundo todo, que fala que a gente tem que priorizar alimentos in natura e minimamente processados né, então é arroz, feijão, verduras, frutas e evitar ultraprocessados, que são esses industrializados com aditivos né. Isso foi um grande marco no Brasil, porque é a primeira cesta básica brasileira de alimentos com critérios de saúde. que prioriza alimentos saudáveis. Isso foi um grande marco, primeira vez na história do país.

Dani: A lei de regulamentação deve definir como o imposto seletivo vai funcionar. Mas a proposta sobre as bebidas açucaradas poderia melhorar.

Marcello: Quando você vai olhar o código tributário, está só refrigerantes, uma tônica ou água saborizada. Não tem suco de caixinha, suco em pó, isotônicos, todas as outras bebidas não estão. O que é muito estranho até, porque a experiência no mundo inteiro, geralmente se começa pelas bebidas açucaradas, mas são todas, não é só refrigerante. Então mesmo nessa categoria ainda ficou aquém do que a gente esperava.

Barulho de código de barras em caixa de supermercado

Grazi:  O consumo de bebidas açucaradas provoca anualmente cerca de 13 mil mortes no Brasil. Mais de 720 mil crianças ficam obesas por ano, além de causarem milhões de novos casos de diabetes e milhares de doenças cardíacas e cerebrovasculares, de acordo com a ACT Promoção da Saude.

Dani: Como é a tributação de bebidas açucaradas e de ultraprocessados ao redor do mundo? Quem responde é Florencia Lorenzo, pesquisadora da TJN.

Florencia: Tem um debate grande sobre se esses impostos eles têm um objetivo de arrecadar ou não, né? Porque se a gente está colocando um imposto sobre um comportamento que a gente quer dissuadir, se ele é arrecadatório talvez leve um incentivo ruim, né? Por parte do Estado, do tipo, o Estado quer arrecadar mais sobre uma atividade que na verdade ele quer que deixe de existir, ou pelo menos reduza.

Grazi: O que mostram os estudos internacionais?

Florencia: Uma parte desses estudos tendem a indicar que tem sim um impacto, eu acho que um que foi publicado recentemente e que chamou muita atenção foi o caso do Reino Unido, em particular, que eles implementaram um imposto sobre o consumo de bebidas açucaradas e desde 2016 quando esse imposto foi implementado, o consumo de bebidas açucaradas em crianças diminuiu pela metade. Então se o Estado quer ter esse impacto é uma ferramenta que conjugada a várias outras pode ter impactos positivos.

Som de festinha infantil

Dani: A aplicação do imposto é apenas uma das medidas que precisam ser tomadas para conter o consumo de ultraprocessados. Isso porquê o consumo de bebidas açucaradas é um comportamento cultural. Refrigerantes ou sucos de caixinha costumam ser servidos em festinhas de aniversário da criançada, por exemplo.

Florencia:   Você tem a implementação desse imposto, você tem maiores medidas educativas sobre o tema junto a crianças e junto às famílias, sobre o impacto disso, por exemplo, na obesidade, políticas também relacionadas a acesso a atividades esportivas, políticas de mobilidade ativa, tudo isso, em última instância, é o que impactaria a saúde porque quando a gente está falando de saúde a gente está falando de uma política integral.

Grazi: Voltando à reforma da tributação do consumo no Brasil… A proposta do governo para o imposto seletivo sobre ultraprocessados foi tímida, limitando-se apenas aos refrigerantes. E é contraditório porque um item que segue tendo isenção: os xaropes usados na fabricação de refrigerantes. E seguem isentos por serem fabricados na Zona Franca de Manaus, que é uma área de livre comércio onde qualquer indústria tem incentivo fiscal.

Marcello: Estão na alíquota cheia, o que em vários casos vai significar um aumento da carga tributária que eles pagam hoje. Então, enfim, eu acho que assim, não é o ideal, politicamente é um enfrentamento difícil com a indústria de alimentos, mas se aprovar como está, acho que deixa o país, de novo, em termos de garantia do direito à alimentação adequada, melhor do que a gente estava antes da reforma.

Dani: É insuficiente, mas ainda dá tempo pra melhorar. Como você já ouviu, a lei de regulamentação do imposto sobre o consumo já foi aprovada na Câmara dos Deputados, e seguiu para o Senado Federal, que deve retomar essa discussão em novembro de 2024, após as eleições municipais. Marcello, qual a possibilidade do Senado ampliar a lista de ultraprocessados a serem tributados no imposto seletivo?

Marcello: Você sabe que teve na Câmara um debate grande, um questionamento da indústria que é “mas por que só refrigerante dentro das açucaradas?” Uma crítica que a gente concorda, mas por que só? Então, pelo menos, vamos colocar outros açucarados, se não der para pegar todos ultraprocessados, vamos pegar os alimentos alto em açúcar e com aditivos também, que a gente pega bolachas, biscoitos, outras bebidas açucaradas, como suco de caixinha, néctar, balas, chicletes, chocolates, sorvetes. Tem várias categorias de produtos.

Grazi: Um estudo da ACT Promoção da Saúde identificou que bolachas, sucos, sorvetes, pirulitos, entre outros, são os mais consumidos por crianças e adolescentes; e que esse grupo consome, na média, mais ultraprocessados do que adultos.

Marcello: Vai ter uma disparada da obesidade infantil, dos adolescentes, então assim, a gente está querendo focar nesses alimentos, especialmente alto em açúcar, mais consumidos por crianças e adolescentes, a gente espera que o Senado faça essa correção.

Dani: Para o Marcello, existe uma possibilidade de manter o mesmo nível de arrecadação ao mesmo tempo em que se desincentiva o consumo de ultraprocessados: tributar todos os açucarados para compensar a entrada de carnes na alíquota zero da cesta básica.

Marcello: Uma coisa bem polêmica que aconteceu na reta final na Câmara, ali no último minuto da votação, estava acompanhando ali de pertinho no plenário da Câmara, foi o anúncio da inclusão das carnes na cesta básica. E isso trouxe um impacto grande para a alíquota geral, porque para a alíquota de referência, que é a alíquota que vai incidir sobre todos os produtos da economia, que não tem desoneração, porque a cesta básica tem zero de alíquota. Então, ao colocar produtos lá com alíquota zero  você vai aumentar a carga geral da economia.

Grazi: Sem o imposto seletivo para açucarados, isentar as carnes na cesta básica vai fazer com que a alíquota geral do imposto sobre o consumo dos demais itens tenha que ser mais alta.

Marcello:  Quiseram colocar ali carnes, etc., para aumentar o acesso à população, especialmente de baixa renda, então por que não compensar colocando ultraprocessados no seletivo? A gente já tem até algumas simulações que mostram que, colocando alguns ultraprocessados no seletivo, a depender da alíquota, você consegue compensar e voltar a alíquota anterior geral da economia.

Grazi: Parece muito eficiente ter o imposto seletivo nos ultraprocessados para que crianças e adolescentes consumam menos açúcares. Dessa forma se compensa a isenção das carnes na cesta básica, e assim a alíquota geral do imposto sobre o consumo pode ser mais baixa!

Dani: E isso importa muito: se você é ouvinte do É da Sua Conta, já ouviu que o imposto sobre consumo é um grande gerador de desigualdades, já que as pessoas de renda mais baixa são as que mais pagam impostos sobre o consumo proporcionalmente ao que ganham.

Grazi: Marcello, existe alguma previsão de usar os recursos arrecadados com o imposto seletivo para políticas públicas de saúde, segurança alimentar ou proteção do meio ambiente?

Marcello:  Não, isso em tese teria que ser modificado lá no texto constitucional, porque a Constituição, de maneira geral, veda que impostos sejam vinculados e como é um imposto seletivo, não é uma contribuição, não poderia. A gente tentou fazer isso no ano passado na Câmara, mas houve muita resistência dos parlamentares, o debate público em geral tem uma resistência muito grande e a gente não conseguiu…

Dani: De volta a um ponto que a Florencia Lorenzo já tinha falado: imposto pra arrecadar ou imposto pra inibir um consumo nocivo?

Florencia: E agora vai vir muito em voga isso no debate da regulamentação a gente precisa pensar claramente o que a gente quer obter dele se ele tem um papel mais voltado pra incentivar outro tipo de comportamento talvez o objetivo principal dele não seja arrecadar. Se a gente olha, por exemplo, impostos sobre cigarro, enfim, sobre algumas áreas que já tem uma experiência um pouco mais consolidada, o quanto eles arrecadam também não é algo que dá para negligenciar. Então, a governança desses recursos é super importante, mas eu acho que ela não precisa necessariamente estar vinculada.

Dani: Em geral, os movimentos e organizações sociais que lutam pela garantia de direitos tendem a pedir a vinculação de recursos arrecadados pelos impostos para uma política pública específica, com o objetivo de garantir adequado financiamento. Sem a vinculação, é fundamental garantir que a regra fiscal não limite o destino dos recursos no orçamento para políticas públicas que garantam direitos. E também  que a execução do orçamento seja realmente realizada.

Música de conclusão do episódio

Grazi: A regulamentação da reforma da tributação do consumo no Brasil é uma oportunidade única de promover os direitos à saúde e à  alimentação e nutrição adequadas. A previsão de que a cesta básica de alimentos não tenha ultraprocessados e esteja alinhada com o guia de alimentação do Ministério da Saúde é um importante avanço. É possível usar os impostos para desincentivar o consumo de ultraprocessados e estimular a indústria alimentícia a produzir alimentos mais saudáveis. A regulamentação da reforma tributária está prevista para ser votada no Senado Federal ainda em 2024. É uma chance para que alimentos saudáveis, da agricultura familiar e agroecologia sejam incentivados, com menos impostos, seja na cesta básica ou na alíquota reduzida. Por outro lado, é importante tirar da alíquota reduzida os agrotóxicos e  os concentrados ou xaropes, que são o principal insumo dos refrigerantes. Os agrotóxicos são altamente tóxicos para a saúde humana de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e altamente prejudiciais ao meio ambiente segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais. E o fundamental: todos os ultraprocessados devem estar inseridos no imposto seletivo, especialmente aqueles altos em açúcar mais consumidos por crianças e adolescentes.

Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David. Um abraço e até o próximo.

Dani: Ah, e se quiser se inscrever no nosso boletim mensal, para receber por email as informações sobre novos episódios, entre em www.edasuaconta.com e no fim da página, clique em boletim e se cadastre. Abraço apertado e até o próximo!


Outras Fontes

1

Como os ultraprocessados podem se beneficiar da reforma tributária

2

Diálogo sobre ultraprocessados: soluções para sistemas alimentares saudáveis e sutentáveis

3

Estudo da USP mostra que população mais pobre consome mais alimentos industrializados

4

Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las, Livro de Chris van Tulleken

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Guia alimentar para a população brasileira

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É Da Sua Conta
#64 Direitos humanos podem tornar a tributação mais justa
Os Direitos Humanos se tornaram uma das bases para que a tributação internacional seja mais justa. Isso porque eles estão presentes no termo de referência aprovado em agosto de 2024 e  que vai guiar a construção da Convenção Tributária Internacional das Nações Unidas. Mas até ser incluído no texto, esse foi um dos pontos que gerou mais debates entre os países membros da ONU que participaram do processo. Saiba como foi esse debate e a importância da inclusão de direitos humanos nesse documento.
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jul. 25
2024
É Da Sua Conta
#63 Poluidores devem pagar pela crise climática
Um dos setores que mais polui no mundo é o de transporte marítimo. Em 2022, 858 milhões de toneladas de gás carbono foram emitidas por embarcações no mundo todo. Deste total, 63% vêem dos navios gigantes dos países que fazem parte da OCDE. Além dos danos ambientais, essas corporações internacionais são também as que menos pagam impostos. Com justiça tributária também se combate a crise climática. Esse é o tema episódo #63 do É da Sua Conta
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jun. 28
2024
É Da Sua Conta
#62 Discriminações contra mulheres se combate com justiça fiscal
As violências, discriminações e desigualdades contras as mulheres são fortes em muitas áreas, inclusive naquelas que parecem neutras, como a política fiscal, o sistema tributário e o gasto público. Entretanto, a justiça fiscal é também um instrumento na luta pela eliminação de todas as discriminações contra as mulheres.
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