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Ana Garcia
Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisadora associada do BRICS Policy Center.
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Fadhel Kaboub
Professor associado da Denison University em Ohio, nos Estados Unidos, e autor do blog Global South Perspectives.
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Florencia Lorenzo
Pesquisadora, Tax Justice Network
Em 2025, o Brasil está na presidência do BRICS e tem como um de seus pontos principais da agenda o aprimoramento das estruturas para o financiamento da crise climática. O BRICS e a sua relação com crise climática e tributação, mas também propostas de alternativas para o Sul Global via descolonização e reparação são os temas do episódio #70 do É da Sua Conta.
Ouça no episódio #70:
- Os impactos da crise climática e da transição energética na vida de povos e comunidades tradicionais.
- O papel do BRICS na construção de um mundo multipolar, com Ana Garcia (BRICS Policy Center)
- O potencial do BRICS para descolonizar e descarbonizar, com Fadhel Kaboub (Global South Perspectives)
- BRICS e tributação, com Florencia Lorenzo (Tax Justice Network)
“É necessário financiar essa transição energética, essa mitigação e adaptação às mudanças climáticas, a partir também de um redirecionamento das instituições financeiras multilaterais, que entra também nessa agenda inicial da reforma da arquitetura financeira internacional.”
~Ana Garcia, BRICS Policy Center“ O colonialismo não foi concebido para produzir justiça, desenvolvimento, direitos humanos, ou democracia. E é por isso que eu digo que não podemos descarbonizar ou democratizar um sistema que ainda não foi estrutural e economicamente descolonizado.”
~ Fadhel Kaboub, Global South Perspectives
Coordenação: Naomi Fowler. Dublagem: Zema Ribeiro. Músicas: Distant (Lightining Traveler), Hidden Drama (Serge Quadrado) e Echoes of a war (Damiano Baldoni)
Música: Distant, Lightining Traveler
Pescadora: A crise tem afetado a gente de um modo geral, tanto no trabalho como fisicamente. por causa dos desmatamentos, que vai tirando as matas ciliares e por consequência a seca dos rios. E isso causou um impacto muito grande na economia, causando também doenças por causa do desmatamento das queimadas e aí com isso gera a inalação de fumaça, trazendo bastante doenças respiratórias.
Dani: Financiar a crise climática é uma das metas do Brasil na presidência do BRICS em 2025.Será que o financiamento da crise climática resolverá também os problemas que comunidades pescadoras vêm enfrentando?
Música É da Sua Conta
Grazi: Oi, boas vindas ao É da sua conta, o podcast mensal sobre como consertar a economia para que ela funcione para todas as pessoas e o planeta. Eu sou a Grazielle David.
Dani: E eu a Dani Stefano. O É da sua conta é uma produção da Tax Justice Network, Rede Internacional de Justiça Fiscal. Você encontra a descrição completa e pode ouvir os episódios anteriores em www.edasuaconta.com e nos mais populares tocadores de podcasts.
música abertura
Grazi: O episódio #70 do É da sua conta é sobre o BRICS e sua relação com crise climática, tributação, financiamento climático e alternativas para o Sul Global via descolonização e reparação.
vinheta É da Sua Conta
Dani: O BRICS é um bloco de países formado pelas maiores economias emergentes do mundo. Quando a primeira reunião do grupo aconteceu, em 2009, se chamava BRIC e era composto pelos países cujas letras iniciais em inglês formavam o nome do bloco: Brasil, Rússia, ìndia e China. Em 2010, a África do Sul se somou e passou a ser BRICS, o S de South Africa.
Ana Garcia: Quando o BRIC surgiu enquanto um agrupamento mais alinhado, foi no contexto da crise financeira de 2008, que atingiu primeiramente a economia norte-americana, depois se alastrou para a Europa, esses países se reuniram, naquele momento em Caterimburgo, na Rússia, como países que eram denominados emergentes, aqueles países que cresciam com taxas muito elevadas.
Grazi: Esta é Ana Garcia, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora associada do BRICS Policy Center.
Ana: E que o mercado financeiro lá atrás, em 2001, o Goldman Sachs os identificou como mercados que seriam promissores para os grandes investimentos.
Dani: O mercado financeiro naquela época previa que somente em 2050 os investimentos nesses países teriam grande retornos. Mas os países do BRICS não estavam interessados em serem apenas receptores de investimentos que permitiriam mais enriquecimentos dos países do norte global, já desenvolvidos.
Ana: Esse grupo se juntou como unificado, principalmente na agenda da reforma da arquitetura financeira internacional, particularmente a reforma das instituições financeiras internacionais, FMI, Banco Mundial, que já não representariam o significado econômico de vários países,frente ao voto e ao peso político que esses países, a representação política que esses países tinham dentro das instituições.
Grazi: A agenda de reforma da arquitetura financeira internacional manteve o grupo unido, já que quase duas décadas depois da primeira reunião, ainda se almeja uma significativa reforma financeira internacional. Mas, o que mais unifica esse grupo é outro objetivo:
Ana: Os BRICS passaram a ser gradativamente um grupo com um peso crescente geopolítico. Esse peso geopolítico já começou em 2014, na minha leitura. Com a ocupação da Crimea pela Rússia, foram as primeiras sanções que ocorreram da Europa contra a Rússia. No mesmo ano em que o BRICS cria o novo Banco de Desenvolvimento, que também levantou debates sobre se seria ou não uma concorrência, uma oposição ao Banco Mundial, uma coisa que não ocorre, mas é mais um ator, é uma grande novidade nessa arquitetura financeira. E com a eleição do Trump no primeiro mandato em 2016, o crescente enfrentamento e a contenção tecnológica, principalmente a China, foi virando um pouco esse jogo do BRICS.
Dani: Ao longo dos anos entraram novos membros no grupo. Em 2023 se constituiu como BRICS+, com a participação de Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia. Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão formam o agrupamento dos parceiros do BRICS.Assim, o grupo é formado por países bastante diversos em relação ao PIB, população, modelo político, econômico, social, cultural. E cada país do BRICS pode ter também posturas internacionais individuais diferentes.
Ana: Você vê um Brasil que tenta jogar os dois lados, uma Índia que também tenta jogar com as relações muito positivas que tem com os Estados Unidos e participando do BRICS, tendo, por exemplo, um comércio muito intenso com a Rússia. E aí a grande questão foi que a China, e aí alinhada à Rússia, já vinha pressionando por uma expansão do BRICS nos anos anteriores, até que em 2023 esse momento foi quase inevitável. O Brasil tinha uma certa resistência, não havia uma coesão muito grande dentro do governo brasileiro, mas eles terminaram cedendo e o BRICS acabou expandindo para esses países que são representativos do Oriente Médio, que era uma região que não estava representada, grandes produtores de petróleo, com peso regional e global também importante, e outros países que, vamos dizer, se postularam para ingressar.
Grazi: Tanta diversidade representa desafios na institucionalidade do grupo e na tomada de decisão.
Ana: Se tudo no BRICS é decidido por consenso, agora, nessa presidência brasileira, um dos eixos temáticos é o fortalecimento da institucionalidade.
Dani: O BRICS+ tem o potencial de disputar espaço com o G7 na tomada de decisões globais. O G7 é formado pelas 7 economias mais poderosas do mundo. Essas alianças podem ser influentes. O G77, a maior coalizão de países em desenvolvimento na ONU, consegue influenciar discussões globais. Garantiu, por exemplo, a elaboração da Convenção Tributária na ONU, que fez com que discussões sobre tributação internacional parassem de ser apenas na OCDE.
Ana: O BRICS tem um enorme potencial econômico porque ele engloba por exemplo grandes produtores de petróleo, grandes produtores energéticos, grandes produtores agrícolas, a China como uma potência tecnológica combinado com a Índia que também é uma potência crescente na área tecnológica, uma população extensa, muito, muito grande, na verdade, a maioria hoje, e eu combinaria esses fatores materiais na análise com os fatores ideacionais, contraria a ideologia promovida no pós-segunda guerra mundial sobre a hegemonia norte americana. Então hoje você vai ter, sim, um BRICS forte, esse BRICS expandido ganha muito mais força no cenário internacional para enfrentar os países do G7, mas ele ainda precisa de uma costura interna política que consiga dar maior adesão.
Grazi: O que dificulta esse maior alinhamento interno do BRICS?
Ana: É que são países que prezam muito a ideia de respeito à soberania, sistemas nacionais, não intervenção, não ingerência. Então, essa ideia de que, mas você não respeita os direitos humanos, você não respeita os direitos de gênero, isso não está na agenda do BRICS, isso não é uma agenda comum. Então, aí há uma certa dificuldade de encontrar a coesão. O que unifica, mais uma vez, é a ideia de que o mundo precisa ser reformado e que países em desenvolvimento e a ideia ampla do sul global, sul-leste global, precisa ter mais voz na esfera multilateral.
vinheta
Dani: Um dos temas que a presidência do Brasil coloca esse ano na agenda do BRICS é o aprimoramento de estruturas de financiamento para enfrentar as mudanças climáticas. Só que quando olhamos para o BRICS+ encontramos, por exemplo, grandes produtores de petróleo. E os combustíveis fósseis são um dos principais causadores da crise climática pelos países do Norte Global. O Brasil está em 4º lugar como poluidor global. Entretanto, aqui as causas estão relacionadas ao uso extensivo da terra por monocultivos como a soja, a criação de gado e ao desmatamento. Como se alinha essa agenda de financiamento climático com os objetivos nacionais dos países exportadores de petróleo?
Ana: Primeiro, a posição daquela ideia de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, aquela ideia de que sim, precisamos enfrentar, mas vocês, Europa, Estados Unidos, têm historicamente um papel maior nesse financiamento. Segundo, a agenda da transição energética é muito importante para a China. A China criou uma noção que vem sendo muito trabalhada pelo governo chinês, os planos quinquenais, da civilização ecológica. E essa agenda de que as transformações são de longo prazo e que a China precisa se adaptar e criar essa ideia de civilização ecológica em todas as suas frentes é muito forte para o governo chinês.
Grazi: A China já fez uma transição importante na área de produção e conseguiu descarbonizar muito internamente, apesar de ainda ter o carbono como sua principal fonte de energia.
Ana: A China hoje desponta em placas solares e eólicas, a China é hoje uma grande potência da transição energética e ela exporta isso para os outros países. Os bancos chineses têm tido essa agenda na sua ação externa nos seus empréstimos, nos seus financiamentos, etc.
Dani: De que forma esses empréstimos chineses com perspectiva ecológica unificam o BRICS?
Ana: É necessário financiar essa transição energética, essa mitigação e adaptação às mudanças climáticas, a partir também de um redirecionamento das instituições financeiras multilaterais, que entra também nessa agenda inicial da reforma da arquitetura financeira internacional. Aí a gente entra naquela contradição. Há a ideia de que temos que caminhar mas se os americanos e europeus não caminharem a gente também segura essa agenda aqui.
Grazi: Essa “agenda verde” ou de transição ecológica aparece também na agenda do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS.
Ana: Repleto de contradições, por exemplo você tem financiamento do novo banco de desenvolvimento, por exemplo para a Vale, que é uma mineradora que é tudo menos verde. Você tem financiamento do novo banco de desenvolvimento para projetos de infraestrutura que muitas vezes são energias renováveis, como grandes hidrelétricas, mas que tem um impacto ambiental nos territórios enormes. Então é isso, são dois passos para frente e um para trás. Igual, na verdade, a que os europeus e os americanos também vêm fazendo.
Dani: Dentro do BRICS estão também os países ricos em minerais críticos inclusive para a transição energética, como é o caso do Brasil e de muitos países africanos. Mas causam muitos impactos ambientais e sociais.
música Hidden Drama, Serge Quadrado
Comunitária: Na parte do centro-oeste da Bahia que vai se aproximando mais das margens do São Francisco, a gente já tem grandes empreendimentos de parques eólicos. Os animais de criação deles, que a maioria lá são comunidades de fundo de pasto onde eles vivem dentro da área de solta deles, os animais eles circulam dentro do território coletivo e retornam para as áreas individuais. Esses animais ficam desorientados, alguns deles se perdem do bando, vão parar em outra área. Fora os impactos diretamente com as pessoas, né? Questões psicológicas, ansiedade algumas questões que as pessoas não conseguem mensurar, elas só conseguem dizer pra gente, eu não consigo mais dormir tão bem, eu não descanso tão bem. As pessoas atribuem isso, ao som constante que as turbinas emitem. Tiveram também impactos nas infraestruturas das casas casas rachando, telhados caindo pessoas que tiveram que trocar de casa.
música Hidden Drama, Serge Quadrado
Grazi: Só há uma solução para descarbonizar a economia: descolonizar o sul Global. Essa é opinião de Fadhel Kaboub, professor associado da Denison University em Ohio, nos Estados Unidos, e autor do blog Global South Perspectives.
Fadhel Kaboub: Não se pode descarbonizar um sistema que ainda não foi descolonizado. Por uma razão muito simples: as estruturas econômicas coloniais que foram impostas ao Sul global atribuíram um papel econômico, em particular a África e ao resto do Sul global, que pode ser resumido em 3 pontos:
Dani: O primeiro ponto, de acordo com o Fadhel, é o fato do sul global continuar sendo o local onde o mundo industrializado capta as matérias-primas baratas.
Grazi: O segundo é que somos consumidores da produção industrial e das tecnologias do Norte global.
Dani: E o terceiro ponto é que o sul global é para onde o norte global envia as tecnologias que já não são necessárias no mundo industrializado. E chegam aqui com rótulos como desenvolvimento, cooperação, assistência técnica, mas que nos deixam permanentemente no final da cadeia de valor global.
Fadhel: O colonialismo não foi concebido para produzir justiça ou desenvolvimento. Nem direitos humanos, ou democracia. Era um sistema violento, hierárquico, extrativo, abusivo, não democrático e injusto. E é por isso que eu digo que não podemos descarbonizar ou democratizar um sistema que ainda não foi estrutural e economicamente descolonizado.
Grazi: Entretanto, Fadhel afirma que o BRICS foi concebido como um sistema mercantilista orientado para a exportação e o investimento estrangeiro direto. Para ele, não existe ainda no bloco uma visão estratégica para políticas conjuntas de real industrialização e transição ecológica do Sul Global.
Fadhel: Não há nada no sistema BRICS que sinalize investimentos estratégicos em soberania alimentar e agroecologia como parte da visão do BRICS. Não há nada que fale sobre o Sul global, que inclua o enorme potencial dos BRICS para energia renovável, enormes minerais estratégicos que poderiam ser aproveitados para a industrialização verde. Mas estes pontos poderiam ser acrescentados e introduzidos.
Dani: O BRICS tem o potencial de descolonizar. A China, que é o país economicamente dominante nos Brics, coincidentemente é também o que possui toda a cadeia de valor das indústrias que queremos replicar: de energia solar, eólica, geotérmica, farmacêutica, transportes, logística, ou seja, todas as indústrias e tecnologias de ponta estão na China.
Fadhel: Se conseguirmos que os grandes países do Sul global, incluindo o Brasil e a África do Sul,unam forças com outros países em desenvolvimento para fazer um acordo com a China para a transferência de tecnologia para uma verdadeira industrialização. Então pegamos esses três países do BRICS, o Brasil, a África do Sul e a China, e os introduzimos numa nova visão de transformação estrutural que irá desencadear não só o potencial do Sul global, mas irá aumentar extremamente o peso e a relevância dos BRIC como bloco econômico.
Grazi: Como aproveitar a presidência do Brasil no BRICS para convencer o país a dar um apoio e um estímulo maior pra descolonização do Sul Global?
Fadhel: Não acredito que isso possa acontecer, a menos que o Brasil, com a atual presidência, decida ouvir este podcast e liderar o caminho, na tentativa de religar os BRICS internamente. mas penso que o maior potencial está nos blocos do Sul global que ainda nem foram formados.
Dani: Se você ouvinte do É da Sua Conta tiver um meio de chegar ao presidente Lula e sua equipe, deixa eles ouvirem o que Fadhel diz:
Fadhel: Se nós, no Sul global, conseguirmos desencadear efetivas políticas industriais, isso significa que o volume de minerais críticos que se exporta para o norte será utilizado em casa, no sul global, para fabricar e implantar os blocos de construção do nosso próprio desenvolvimento: infra-estruturas de energias renováveis, de fogões e combustíveis para cozinha que reduzam a exposição das pessoas a fumaças e poluentes nocivos, de transportes limpos, todas as infra-estruturas digitais e a revolução industrial.E é preciso incluir inevitavelmente a indústria militar… todas estas infra-estruturas irão consumir os minerais e metais críticos que atualmente exportamos. Isso significa que iremos forçar os principais blocos econômicos, Europa, Estados Unidos, Japão, Austrália, e inclusive a China, a repensar o modelo de crescimento deles, que é obcecado com o consumismo, com o desperdício e a obsolescência planejada. Tudo isso será redesenhado para que todos possamos viver dentro dos limites planetários. Assim, a verdadeira industrialização do desenvolvimento no Sul forçará a conversa e a ação efetiva para o decrescimento no Norte global.
Grazi: Um dos principais pontos da presidência brasileira no BRICS é trazer a discussão sobre financiamento climático. Para o professor Fadhel, essa discussão precisaria rever o chamado orçamento global de carbono, que é a quantidade de carbono que cada país pode consumir. É o mercado de carbono que permite que o Norte Global siga poluindo enquanto os povos e comunidades tradicionais no Sul Global são usadas como moeda de troca para compensar estas emissões de gases de efeito estufa.
Dani: Os países do Sul global não consumiram o seu orçamento de carbono. Por exemplo: todas as emissões acumuladas do continente africano inteiro são inferiores a 4% desde a revolução industrial, o que corresponde às emissões apenas da Espanha. Enquanto isso, os países do Norte Global já excederam o orçamento de carbono que possuiam. Passaram a comprar direitos de emissões de carbono no Sul Global. Falamos sobre como o mercado de carbono afeta as populações no Acre no episódio #4 do é da Sua Conta.
Grazi: O professor Fadhel explica como o financiamento climático por meio do mercado de carbono prejudica os países do sul global:
Fadhel: Se eu tiver uma dívida de 100 dólares, devo pagar 100 dólares. O que significa que posso te pagar à vista, ou negociar o plano de pagamento e dizer que, nos próximos 10, 20 anos, vou te pagar 10 por ano. E depois a dívida fica paga. É assim que funciona. Mas, infelizmente, quando olhamos para o espaço do financiamento climático, em vez de eu te dar 100, te dou 3 e te digo exatamente o que fazer com esses 3 e imponho condições. Faço com que você gaste estes 3 de uma forma que me favoreça. Depois me sinto mal porque, nitidamente 3 não são suficientes para o financiamento do clima. Então eu digo, não se preocupe, vou te emprestar 7 dólares e impor condições, para utilizar esses 7 dólares e te cobro juros sobre essa dívida. Por vezes são taxas concessionais, mas, em geral, têm de pagar juros e te coloco numa armadilha de dívida, basicamente. Depois digo: bem, precisamos obviamente de mais financiamento climático para a ação climática.
Dani: Ao invés de empréstimos, Fadhel Kaboub propõe um sistema de reparação por tantos séculos de colonização:
Fadhel: O meu argumento tem sido que a dívida climática deve ser paga: Primeiro, o cancelamento de todas as dívidas relacionadas com o clima que os nossos países acumularam ao longo das últimas décadas. Em segundo lugar, tem de ser paga sob a forma de subvenções e não de empréstimos e mais aprisionamento econômico. E, em terceiro lugar, tem de ser pago sob a forma de transferência de tecnologias que salvam vidas, para nos permitir fabricar e utilizar os elementos constitutivos do desenvolvimento, da prosperidade e da resiliência e adaptação às alterações climáticas. A transferência de tecnologia será para fabricar e instalar infra-estruturas de energias renováveis com os nossos próprios minerais críticos, para transferir tecnologia, para fabricar infra-estruturas de cozinha limpa e de transportes públicos limpos. Este é o quadro de reparações climáticas que produzirá a transformação estrutural, tanto para descolonizar como para descarbonizar o sistema.
Música Echoes of a war, Damiano Baldoni
Indígena: A gente culpa atividades intensivas de desmatamento queimadas em alta escala, tanto no Cerrado como na Amazônia, como no Pantanal. O desmatamento em larga escala né. Sem controle na parte da ambição da ganância do ter, de produzir para o lucro. Então, se usa veneno também em grande escala. Tudo isso está acumulando no planeta, está causando esses danos esses problemas que a gente está assistindo. Então, a gente vê que a gente sabe que é o agronegócio, que não têm limite, eles querem se apropriar dos territórios para fim de lucro. É um bem que está gerando muita ganância, muita corrida para se ter a terra, esse bem que é para usar em várias situações, inclusive minério petróleo, água, tudo está aí na terra, então existe essa corrida para se apropriar dos territórios, expulsar as populações. Isso faz parte da colonização para tomar território. Então, esse é um projeto colonizador assassino, né?
Música Echoes of a war, Damiano Baldoni
Grazi: A descolonização é a solução, também para a crise climática:
Fadhel: Não pode haver justiça num sistema colonial. Isso significa que temos de abordar todas estas questões estruturais, ao mesmo tempo que nos concentramos na justiça, na democracia, no desenvolvimento sustentável e no clima. Todas estas questões estão interligadas no âmbito da arquitetura do colonialismo, que tem sido tão rígida e teimosa durante séculos, e não vamos avançar sem resolver essa arquitetura. Será um novo mundo, um mundo multipolar de paz, justiça, prosperidade e sustentabilidade.
vinheta
Dani: Um grande passo para descolonização foi dado nas construções sobre tributação internacional, com a mudança do espaço da OCDE para a ONU, com a Convenção Tributária. O processo de elaboração dessa Convenção começou em fevereiro de 2025. Nessa primeira reunião foram definidas as “regras do jogo”, ou seja: os protocolos que serão elaborados, como as discussões ocorrerão e como as decisões serão tomadas. Ana Garcia, do BRICS Policy Center acredita que o BRICS deve trabalhar para que essa convenção favoreça o Sul Global.
Ana: A minha impressão, conhecendo um pouco desse histórico do BRICS, é que eles tendem à agenda que é cara a nós, paises em desenvolvimento, a fortalecer o espaço da ONU em detrimento da OCDE. Então, isso já é positivo para fortalecer a convenção-quadro da ONU e tentar viabilizar uma agenda mais pró-interesses dos países, vamos dizer, onde os lucros são feitos.
Grazi: A tributação passou a fazer parte da agenda do BRICS em 2014, quando o Brasil estava na presidência do bloco. Não é coincidência que o BRICS tenha colocado o tema tributário na agenda a partir de 2014. Isso porque em 2013 o G20, grupo das vinte mais poderosas economias do mundo, aprovou um Plano de Ação que encomendou à OCDE, uma organização que representa os interesses das economias mais ricas do mundo.
Dani: O Plano conhecido como BEPS, tinha como objetivo evitar que as multinacionais transferissem lucros de jurisdições com impostos mais altos para jurisdições com impostos mais baixos. Ou seja, um projeto para evitar a erosão da base tributária. Mas que não deu muito certo. Isso porque os países mais ricos estavam apenas protegendo seus próprios interesses e de suas multinacionais, como você pode escutar no episódio #68 do É da Sua Conta.
Grazi: Em 2025 o Brasil está na presidência do BRICS. Cabe ao país elaborar a agenda das reuniões anuais do grupo. A Florencia Lorenzo, pesquisadora da Tax Justice Network, faz uma análise da questão tributária na agenda do BRICS.
Florencia Lorenzo: A presidência do BRICS vem logo depois da presidência do G20, então algumas das estruturas que o Brasil desenvolveu para acolher o G20, alguns grupos de engajamento, e as pessoas que estavam responsáveis por isso, teve algum nível de continuidade. Eu acho que isso é uma experiência bastante interessante para ver porque isso não ocorre com toda a presidência do BRICS.
Dani: Mas se a gente entrar no site da presidência brasileira do BRICS e ler a nota conceitual que eles publicaram, tem muito pouco sobre tributação.
Florencia: Na sessão sobre economia, temas econômicos, os temas que estão predominantemente aparecendo ali estão muito mais voltados a investimentos sul e sul, aumentar os fluxos comerciais entre os países do BRICS, temas relacionados a questões monetárias, que é uma preocupação do BRICS desde sempre. Mas, de forma geral, o tema da reforma da governança financeira internacional foi sempre um tema muito importante para os países que compõem o BRICS, seja na sua atuação individual, seja quando eles se juntam para atuar mais como um bloco. Então, se existe algum gancho que pega bastante entre essas duas temáticas de tributação e BRICS, é essa discussão mais ampla sobre a necessidade de uma reforma da governança financeira internacional.
Grazi: O IBAS é um grupo reduzido do BRICS, composto por Índia, Brasil e África do Sul. No final de 2024 o grupo lançou um comunicado na cúpula do G20. A questão tributária apareceu de forma enfática. Que tributação específica o IBAS defende nesse documento?
Florencia: É forte a pauta proposta pela presidência brasileira, relacionada à tributação dos super-ricos, à progressividade tributária como uma pauta que os países têm que se comprometer. E o que é legal de ver da diferença desse comunicado do IBAS com o comunicado que saiu do G20, é que se no comunicado do G20 a OCDE era chamada para discutir algumas dessas questões, no comunicado do IBAS o mandato era muito mais levado para a Convenção Tributária das Nações Unidas. Então, dá para ver, na diferença da composição desses grupos, que a diferença não é só sobre conteúdo que às vezes está presente, mas também de quais fóruns tem que tocar determinadas pautas.
Dani: O comunicado do IBAS também fortalece o espaço da Convenção da ONU para as decisões de tributação internacional.
Grazi: E os países que compõem o BRICS: como estão votando no processo da Convenção da ONU?
Florencia: A gente vê que as preocupações desses países muitas vezes são bem distintas e as pautas que eles estão defendendo ali nem sempre são as mesmas. Então, por exemplo, a gente teve agora a discussão sobre qual seria o segundo protocolo para ser negociado ao mesmo tempo que a convenção tributária e enquanto o Brasil estava fazendo essa campanha bastante forte para que o tema da tributação dos super-ricos ou evitar o abuso tributário dos super-ricos entrasse como segundo protocolo, representantes da Índia e da China acabaram focando mais em temas relacionados à resolução de disputas, que foi o tema que acabou sendo definido como segundo protocolo.
Dani: O tema do segundo protocolo, a resolução de disputas, podemos tratar num outro episódio. Mas você pode escutar detalhes sobre o que é a Convenção Tributária da ONU e os protocolos nos episódios #61 e #64 do É da sua conta.
Grazi: É interessante observar que Índia e especialmente a China têm uma posição dual no tema de tributação internacional, considerando sua relevância industrial global. Isso é, em determinados momentos se alinham mais com os países do sul global, mas em outros têm posições mais próximas dos países do norte global.
Dani: A Índia por exemplo, se alinha com países do norte global quando defende o direito de tributação de multinacionais nos países de origem e não necessariamente nos países onde os lucros são feitos. Tributar onde os lucros são feitos costuma ser a posição tradicional dos países em desenvolvimento do sul global.
Florencia: O caso mais importante provavelmente seja o da China, que é um país que está passando por esse processo de transição de ser um país importador de capital para ser um país que em muitas das suas relações bilaterais é exportador de capital. E tem investimentos importantes e muitas vezes acaba adotando posturas mais próximas, por exemplo, como países da União Europeia ou mesmo os Estados Unidos. O caso mais importante talvez aqui seja com as empresas de serviços digitais, e de plataformas de redes sociais, TikTok, Kawaii, enfim, todas essas ferramentas que, nesse sentido, alinham muito mais a China com os Estados Unidos em relação aos seus interesses, né? Do que com outros países do BRICS, por exemplo. O que gera alguns desafios justamente também para a construção de uma agenda comum entre esses países.
Música de fundo
Grazi: O BRICS se agrupou para reivindicar a reforma da arquitetura financeira e da governança internacional. Demandam mais voz e representatividade, um mundo multipolar em que vários países governem e determinem a agenda e as normas dos sistemas internacionais.Promover os debates e decisões sobre tributação da ONU no âmbito da Covenção Tributária é um grande passo nessa direção. Existe potencial para que o BRICS avance e fortaleça o espaço da Covenção Tributária da ONU e de uma agenda que seja significativa para o conjunto dos países do sul global. É fundamental que seja realizado um processo de descolonização de fato, com soberania alimentar, energética e tecnológica, aliada a políticas de reparação climática e adequado financiamento. Que o BRICS atue no interesse econômico da maioria para promover a justiça social e ambiental. Imposto justo é um instrumento de reparação para os países em desenvolvimento.
Música de encerramento É da Sua conta
Grazi: O É da Sua Conta é coordenado por Naomi Fowler. A produção é de Daniela Stefano e minha, Grazielle David. Um abraço e até o próximo.
Dani: Te desejo um excelente carnaval. Fica bem e até o próximo!